A origem da palavra “crônica” remonta ao conceito grego antigo alusivo à própria essência do tempo em sua inexorabilidade. Sobre a etimologia (origem) do termo, afirma Massaud Moisés, em seu clássico “Dicionário de Termos Literários”, que ele tem seu nascimento a partir do latim “chronica”, derivado do grego “khronikós”, que por sua vez procede da adaptação do grego “khrónos”, cujo significado é “tempo”.
Na história da cultura e das ideias, parece ter havido um incidental cruzamento entre o conceito essencial de tempo, “Khronos”, e o seu homônimo Cronos, personagem mitológico que era um titã cuja característica mais lembrada é a de que devorava os próprios filhos, conforme é descrito pelo poeta grego Hesíodo em “Teogonia - Genealogia dos Deuses”. O canibalismo do titã Cronos guarda uma íntima correspondência simbólica com a essência de “Kronos”, o tempo, pois esteve devora os próprios filhos, ou seja, absolutamente tudo o que existe, assim como o titã devorava seus rebentos para evitar a profecia de que eles o destituiriam do poder em momento oportuno, dentro do tempo.
Em sua referida obra, Massaud Moisés conceitua a crônica, gênero textual e literário, historicizando seu percurso na temporalidade e no espaço. De início, seu caráter era mais histórico que propriamente literário, pois se tratava de uma narrativa de acontecimentos em sucessão cronológica que, por volta do século primeiro da era cristã até meados do século 12, estava mais voltada para a história que propriamente para a literatura. É na segunda metade do século 19, ainda segundo Moisés, que a crônica assumirá feições mais literárias, estabelecendo em definitivo a sua manifestação entre os gêneros textual e literário.
Neste contexto, cumpre observar que a literatura traz em sua natureza íntima uma característica muito interessante, a exemplo de outras linguagens artísticas: a metalinguagem. Ou seja, para cada obra de ficcionalidade que se tem, comumente se apresentam obras que sobre ela se debruçam, apontando-lhe as características, numa perspectiva metalinguística em que o código se volta sobre o próprio código para explicá-lo da forma mais detalhada possível. Em outras palavras, é a textualidade a manifestar-se sobre a própria textualidade artística. Análise ou crítica literária é o nome com que se designa essa atividade metalinguística por excelência.
Na obra “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”, publicação de 2007 da Editora Objetiva, tem o leitor a coletânea organizada pelo pesquisador Joaquim Ferreira dos Santos, a quem coube a seleção da centena de trabalhos que ele considera como os mais representativos da excelência do gênero na cultura literária brasileira. Ferreira dos Santos dividiu sabiamente o trabalho por períodos específicos, elencando 62 autores representativos da crônica. Com muita propriedade, a crônica abre alas do volume é do grande mestre da literatura brasileira em seus diversos gêneros, Machado de Assis.
Sob o título de “O Nascimento da Crônica”, o fundador da Academia Brasileira de Letras apresenta um excepcional exemplar do que seja a crônica, cujo tema é de natureza metalinguístico, pois se trata de uma crônica sobre a crônica. De início, tem-se como gancho para a narrativa machadiana o trivial; no caso, o calor. Segundo Machado, neste trabalho metalinguístico, o jeito certo de dar início a uma crônica. Do calor escaldante se passa a considerações atmosféricas sobre a sua origem e está dado o tom. Tudo funcionando como preâmbulo para Machado discorrer sobre a possível origem da crônica, que ele remonta a Esdras, o escriba bíblico, em confronto com a afirmação de Massaud Moisés de que ela teria origem no primeiro século da era cristã.
No cara e coroa da moeda literária, caracterizado pela interface entre ficção e análise/crítica literária, a exatidão histórica e conceitual compete ao estudioso e não ao ficcionista, que tem a seu favor a licença poética, conforme nos é lembrado por Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente”. E Machado de Assis se utiliza dessa concessão de forma primorosa, levando a possível origem da crônica até o jardim do Éden, cujo clima era possivelmente ameno.
Todo este preâmbulo climático é a preparação para o acontecimento prosaico do cotidiano citadino narrado em “O Nascimento da Crônica”, que é caracterizado na narrativa machadiana pelas considerações do narrador em torno do enterro de um amigo do cronista em uma manhã de sol a pino, o que o faz meditar no desfecho da crônica sobre a sorte dos operários do cemitério que recebem ao longo de todo o dia o sol diretamente sobre a cabeça, a quem o narrador designa como “pobres diabos”, expressão que traz em si todo um mundo simbólico possível e passível de ser explorado semanticamente.
Ao descrever características do gênero, afirma Massaud Moisés que se trata de um relato breve, para ser consumido rapidamente no tempo e votado ao esquecimento pela sucessão de outros acontecimentos triviais que se lhe sobrepõem. E é este detalhe distintivo do gênero crônica que é perfeitamente simbolizado pela narrativa cruzada da homofonia grega que vincula o tempo e o titã Cronos, pois ela, a crônica, é devorada pela passagem inexorável do tempo. As que escapam ao seu cerco, tornam-se obras-primas que transcendem ao gênero. Mas, para efeitos didáticos, ainda se lhe vinculam pela origem. O trabalho organizado por Joaquim Ferreira dos Santos é um repositório de materiais que, em sua grande maioria, escaparam à voracidade do tempo por conta da excelência literária de seus autores.
Pela sua característica de brevidade formal e de conteúdo, a crônica se constitui um excelente exercício literário para autores iniciantes treinarem a verve para voos mais altos no amplo horizonte artístico da literatura. Além disso, constitui também importante ferramenta experimental para o estudante em geral que se mostre interessado na performance cultural literária como um todo.
Com esta última perspectiva em foco, o Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, no ano em que celebra duas décadas de sua criação pelo empreendedorismo da arte-educadora Dra. Luz Marina de Alcantara, tem trabalhado o gênero junto à comunidade escolar da rede pública de Goiás, a Seduc-GO, sob direção da secretária de estado Dra. Aparecida de Fátima Gavioli Soares Pereira, envolvendo milhares de estudantes da rede, através do projeto V Concurso Cênico-Literário “Goianidades: Mídias e Comunicação”, que tem como finalidade estabelecer o letramento midiático e informacional junto à comunidade escolar goiana, complementando de forma excepcional a formação cultural do jovem estudante do estado.
A direção-geral do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte é da arte-educadora Euzamary Pimenta e a coordenação do projeto é da arte-educadora Mara Veloso.
*GISMAIR MARTINS TEIXEIRA - Doutor em Letras pela UFG, com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.