A dissertação de mestrado intitulada “Antropologia da ficção científica: Alteridade Maquínica em Star Trek: Voyager”, de 2016, cuja autoria é do antropólogo William Perpétuo Busch, em pesquisa realizada junto ao correspondente departamento de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, apresenta uma instigante abordagem antropológica no âmbito da ficção científica da série norte-americana Star Trek (Jornada nas Estrelas), criada por Gene Roddenberry na década de 60 do último século.
Neste trabalho singular, Busch contempla as principais séries da franquia decorrentes da produção original de Roddenberry, que data do ano de 1967. Das várias séries desenvolvidas desde então, o pesquisador noticia em sua dissertação que a série “Star Trek: Deep Space Nine (DSN)” introduziu uma nova abordagem para a franquia, pois as ações se passam em uma estação espacial distante da Terra, na órbita de um planeta denominado Bajor. Conforme Busch, o seriado que teve início em 1993, com duração de sete temporadas, explorava temas como religiosidade e conflitos bélicos referentes a ocupações e colonialismos planetários. Ou seja, algo bastante familiar à história da própria Terra com o seu passado antropológico belicoso.
No episódio 25 da terceira temporada de “Deep Space Nine”, o trekkie - nome dado ao fã incondicional da franquia - pode assistir a um episódio que traz uma profunda correspondência com uma possível origem lendária de “Star Trek”. Conforme uma narrativa de cunho esotérico em torno dessa emblemática série, seu autor, Gene Roddenberry, teria buscado a inspiração para o seu universo conceptual em uma sessão mediúnica de psicografia, ou canalização (como se diz no mundo anglófono), em que um grupo de entidades teriam apresentado a ele informações acerca da vida extraterrestre em moldes bastante semelhantes ao que é reproduzido nas
telas. A dissertação de William Busch, por sua vez, segue a informação convencional para a origem do seriado.
Sob o título de “Facetas”, o capítulo 25 da terceira temporada, que tem roteiro assinado por René Echevarría e direção de Penhasco Bole, traz uma narrativa peculiar, remissiva a uma ficcionalizada antropologia da religião projetada num planeta distante, segundo o norteamento da pesquisa de Busch. Assim, a personagem Jadzia Dax, uma alienígena do planeta Trill, funciona culturalmente como uma simbionte, cuja característica é receber o corpo de um outro ser, frágil mas muito sábio, que passa de um hospedeiro para outro por ocasião da morte do indivíduo que o abriga em seu interior. A vida e a memória de ambos passam a ser compartilhadas, numa perspectiva bastante interessante de uma fictícia antropologia alienígena.
Em “Facetas”, uma cerimônia espiritual deve ser realizada para que Jadzia Dax possa harmonizar-se com a memória dos hospedeiros anteriores, que passa a ser compartilhada com ela durante o transe, sendo possível estabelecer um diálogo entre Dax e as personalidades anteriores, cujas recordações lhes permitem uma vida efêmera enquanto o ritual acontece. Neste contexto, ela precisa da ajuda de pessoas que devem emprestar seus corpos momentaneamente para que um sacerdote trill transferisse a personalidade dos antigos hospedeiros para os corpos sob empréstimo.
O ritual se assemelha de uma forma bem próxima das sessões mediúnicas do espiritismo e do espiritualismo, quando uma entidade que já viveu sobre a Terra se serve do corpo do indivíduo denominado médium para comunicar-se com os vivos. Jadzia Dax realiza a sessão de maneira paulatina, conversando individualmente com os antigos hospedeiros de seu hóspede em momentos distintos. Chama a atenção, no episódio, a extraordinária performance dos atores que interpretaram o simulacro de transe mediúnico para que Dax pudesse dialogar com as antigas entidades que ganharam vida momentânea através do processo mediúnico intergalático.
Já no episódio oitavo da quarta temporada, intitulado “Homenzinhos Verdes”, a série trabalha com o histórico e nebuloso episódio da Área 51, particularmente o chamado “Caso Roswell”, em que supostamente um disco voador teria se acidentado na região de Roswell, Novo México, nos Estados Unidos, com os destroços sendo recolhidos pelo exército norte-americano. Narrativas de teoria da conspiração dão conta de que os norte-americanos teriam encontrado tripulantes na suposta nave, trabalhando a partir de então com reversões tecnológicas para tentar compreender a dinâmica funcional da suposta nave.
Nesse capítulo, três ferengis, raça alienígena que interage com os terrícolas e possuem uma fisiologia humanoide esteticamente bem diferenciada, saem da estação espacial em direção à Terra, que está numa distância só superável pela viagem acima da velocidade da luz, com a finalidade de trazer o mais jovem para alistar-se na Academia da Federação dos Planetas Unidos, instituição terrena que se liga geopoliticamente a incontáveis exoplanetas espalhados por vários quadrantes do universo. Na proximidade da Terra, a pequena nave ferengi se envolve em uma anomalia cósmica e é arremessada no tempo, mais precisamente para o século 20.
Os ferengis despertam em uma enfermaria, cercado por militares e cientistas terrenos abismados com sua estranha fisiologia e linguagem extremamente bizarra, pois seus tradutores universais sofreram pequena avaria durante a queda. O episódio é trabalhado pelos roteiristas Toni Marberry e Jack Treviño de forma excepcional, encaixando seus personagens de maneira precisa no contexto das exóticas narrativas em torno da mística que se desenvolveu em torno da Área 51, estação onde os supostos alienígenas e nave estariam escondidos e que até hoje alimenta o imaginário coletivo, sobretudo num mundo que se tornou on-line.
Ambos os episódios da franquia, que esteve sob estudo antropológico na pós-graduação de William Busch, evocam à mente as peculiares palavras de Jean Chevalier, escritor, filósofo e teólogo francês, em seu clássico e denso “Dicionário de Símbolos”: “Hoje em dia, os símbolos gozam de nova aceitação. (...) Deve-se essa aceitação, em grande parte, às antecipações da ficção que a ciência comprova pouco a pouco, aos efeitos da dominação atual das imagens que os sociólogos estão tentando medir (...)”. No contexto destas palavras, vale lembrar que o primeiro exoplaneta - mundos além do nosso sistema solar - só foi descoberto pela ciência em meados da década de 90 do último século, mas a realidade simbolizada em “Star Trek” já empolgava os trekkies três décadas antes.
*Gismair Martins Teixeira - Doutor em Letras com Pós-Doutorado em Ciências da Religião