O ano era 2013. Eu tinha uma revista e, por isso, vivia em eventos sociais, inaugurações de lojas, desfiles de moda, exposições de arte, mostras de arquitetura e lançamentos imobiliários, dentre vários outros eventos, quase que diariamente. E foi no lançamento de um empreendimento, cujo nome da construtora será omitido por motivos óbvios, que essa história aconteceu.
Sexta-feira. Tinha acordado cedo e cumprido a jornada matutina na assessoria de imprensa da Prefeitura de Goiânia, onde eu dava expediente, na época. O almoço para convidados e imprensa estava marcado para às 12 horas, no local onde seria construído um prédio de luxo, de altíssimo padrão, num apartamento decorado com cada detalhe. Uma formosura!
Nós, jornalistas, éramos recepcionados por garçons e garçonetes bem vestidos com welcome drink – um prosecco brüt levemente amadeirado e trincando de gelado – e já encaminhados ao elevador, que nos levaria até o mezanino, onde ficava o apartamento decorado de 730 metros quadrados, todo montado como se fosse cenário de novela. Arquitetos, engenheiros e empreiteiros explicaram todas as novidades do empreendimento com riqueza de detalhes. O tour terminaria na imensa varanda gourmet, onde duas mesas longas, para 12 lugares cada, estavam postas - também como se fossem para uma cena de filme.
Garçons circulavam com espumante, vinho branco e tinto, cerveja artesanal, drinques à base de gin e coquetéis de frutas coloridos. Em cada um dos cantos da varanda havia um aparador com frutas diversas e petit fous variados, água saborizada – super in na época – e sucos diversos. Fui convidado por um dos empresários a me sentar. Escolhi a segunda cadeira do lado esquerdo de um dos anfitriões, que assumiu a cabeceira da mesa.
Guardanapo na perna, taça calibrada – agora de vinho branco – e papo ameno com alguns colegas jornalistas. O garçom chega pelo meu lado direito e me oferece o cardápio em papel artesanal, com a logomarca da construtora. Tinha cardápio! Três entradas diferentes, quatro pratos principais e, pelo menos, quatro sobremesas diferentes. Tudo muito, mas muito fino. Todos conversavam sussurrando. Era o retrato da elegância. Escolhi a entrada pelos ingredientes: salada com alface, rúcula, tomate seco, palmito, lascas de queijo parmesão, nozes e molho pesto. Pelo menos até onde meus olhos alcançavam, apenas eu tinha escolhido a tal entrada. Sou um grande entusiasta de palmito e molho pesto e deixei claro o porquê da minha preferência quando apontei a minha escolha para o garçom. “Água com gás ou sem gás”, ele me questionou. “Com gás, por favor”. Aproveitei para calibrar, mais uma vez, a taça de vinho.
O serviço era rápido e de excelência, até porque todo o convescote não poderia passar das 14 horas. Em menos de três minutos a salada foi servida. Me lembro como se fosse agora das cinco rodelas de palmito milimetricamente fatiadas e colocadas por cima da salada, como finalização e a finalização com pesto sobre o branco do palmito. Virei o vinho, pedi mais e aparelhei-me com os talheres. O garfo sofreu uma certa resistência para espetar a primeira rodela da iguaria, que levei à boca com toda sua plenitude. Assim que comecei a mastigar, entendi a resistência do garfo: o palmito estava duro. Muito duro!
Pensei: “Vai mastigando… uma hora qualquer isso tem de ser deglutido”. Mas não. Eu mastigava o palmito e ele ia se desfazendo em fibras, se transformando numa bucha e preenchendo todo o espaço da minha boca. Já estava seco, parecia uma estopa. Fiquei com medo de me sufocar. Olhei sutilmente para os lados e percebi as pessoas degustando saladas mais coloridas e deglutíveis. E eu não sabia o que fazer. O empreiteiro sentado à cabeceira da mesa, à minha direita, perguntou alguma coisa para mim. Eu não consegui ouvir e apenas sorri com os lábios cerrados. Esperei o momento certo, peguei o guardanapo e, discretamente, passei-o pela boca e cuspi a estopa. Que alívio! Poderia ter acabo por aí. Mas não. Como dizem por aí, desgraça pouca é bobagem.
Não acreditei que o azar poderia acontecer de novo. Eu espetei outra rodela de palmito. Desta vez, não houve tanta resistência e eu coloquei mais um pedaço da mesma iguaria na boca. Comecei a ter uma crise de pânico quando percebi que a rodela de palmito era irmã gêmea da outra. Parecia que tinham sido cortadas com uma mini serra elétrica. Eu comecei a suar. E lá estava eu – de novo! – com uma estopa na boca. A situação era tão grave que as pessoas ao meu redor já estavam recebendo o prato principal e eu ainda não tinha mexido na salada, em si.
Pensei em fechar os olhos e forçar para engolir. Tive ânsia de vômito. Suava! E mais: “Isso é celulose e meu organismo não digere. Também posso morrer sufocado por uma estopa. Que vergonha”, pensava com muita convicção. Nessa altura eu já não escutava mais nada do que as pessoas falavam, tamanha era a minha concentração. Eu não podia tossir, tinha de respirar com cuidado e deveria me controlar ao máximo, mentalmente, para não vomitar. O garçom novamente aparece com o cardápio e o coloca ao meu lado, aberto na página do prato principal. Não sei se ele percebeu a enrascada e que eu tinha me metido. Não consegui ler. Estava compenetradíssimo tentando resolver o meu perrengue.
Pensei em usar o guardanapo novamente, mas não seria viável, já que havia uma bucha de celulose de palmito nele. Uma jornalista sentada à minha esquerda já escolhia a sobremesa e eu ainda não tinha sentido o sabor do pesto. E pensava mais: “Posso simular alguma cena. Deixo cair alguma coisa e abaixo para pegar, desovo a estopa debaixo da mesa e resolvo a saga”. Foi quando o garçom se aproximou e perguntou se eu já estava satisfeito e gostaria de pedir o próximo prato. Sorri amarelo e fiz sinal para que me desse um tempo. Me serviu mais vinho e saiu de perto. Rapidamente, balancei o guardanapo debaixo da mesa e repeti o processo inicial para retirar a segunda bucha.
Mandíbula e maxilar doíam. Joguei o anel que abraçava o guardanapo de linho bege debaixo da mesa, abaixei-me para pegar e desovei mais uma estopa. Quando voltei à posição normal para alguém que deveria estar almoçando, o garçom tinha levado o prato de salada praticamente intocado. Que frustração! E que alívio...
Calibrei a taça novamente e tomei rápido o espanhol amadeirado, que deveria ter sido degustado lentamente. Eu precisava relaxar e descontrair. E comer. Pedi o conchiglione recheado e gratinado. Achei que fosse a alternativa que menos usasse as forças da mandíbula e do maxilar. Provavelmente percebendo meu enrosco, o garçom já se adiantou e sugeriu que eu escolhesse a sobremesa, já que o serviço estava terminando. Dispensei e pedi mais uma taça de vinho para arrematar. Na hora de ir embora, ainda tinham uns presentinhos – agenda, caneta personalizada e uma caneca térmica de muito bom gosto. Eu recebi também uma marmitinha muito bem disfarçada, com um bilhete: “Preparei uma salada com todo cuidado e escolhi o palmito um por um, só os melhores. Espero que possa saboreá-la sem qualquer intercorrência”. O bilhete era assinado pela chef que preparou o cardápio. E eu achando que o drama tinha sido só meu.
*Rimene Amaral é jornalista, radialista e fotógrafo