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Gismair Martins Teixeira

Kokoro e a maiêutica socrática

| 11.09.24 - 17:42
A Quarta Revolução Industrial ou a Indústria 4.0 é um conceito que tem sido popularizado pelo fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, o alemão Klaus Schwab, que é doutor em economia pela Universidade de Friburgo e mestre em administração pela Universidade de Harvard. Tópicos como Inteligência Artificial, Internet das Coisas (IoT), Robótica Avançada, Big Data, Computação em nuvem, Impressão 3D, Biotecnologia, Realidade aumentada e virtual, Blockchain e 5G configuram a Indústria 4.0, que tem sido objeto de pesquisa e estudo por parte de Schwab.

Em “Aplicando A Quarta Revolução Industrial”, obra publicada em 2018 com tradução ao português no mesmo ano de lançamento, Klaus Schwab discorre sobre essas tecnologias e sua integração no universo econômico mundial. No capítulo oito, que trata da Inteligência Artificial e sua aplicabilidade no dia a dia, o autor menciona que nenhuma das tecnologias da Quarta Revolução Industrial capturou tanto a imaginação cinematográfica como a Inteligência Artificial, que muitas vezes é apresentada em conformação humanoide.

O exemplo que vem à mente de Schwab para exemplificar essa captura do imaginário pela arte cinematográfica é o filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, da obra homônima de Arthur C. Clarck. Dirigido por Stanley Kubrick, a película traz a Inteligência Artificial HAL 9000 assassinando a tripulação de astronautas para cumprir a sua missão de levar os homens até a proximidade de Júpiter. Embora o espectador desatento do filme possa não perceber, na obra escrita há a descrição antecipatória de tecnologias como o Tablet, quando o protagonista acessa em uma tela os principais periódicos da época para se inteirar do noticiário, o que hoje já se tornou comum para quem possui um smartphone.

No suplemento do décimo terceiro capítulo de “Aplicando A Quarta Revolução Industrial”, que trata de uma perspectiva interacional entre a Quarta Revolução Industrial, as artes e a cultura, Klaus Schwab discute a importância da arte na cultura a partir de uma perspectiva que considera a importância do fator humano como elemento de suma importância para a compreensão de como a inteligência emocional pode e deve ser levada em conta para a aplicação dos extraordinários recursos que o admirável mundo novo tecnológico tem disponibilizado à humanidade.

A inteligência emocional, conceito formulado pelo psicólogo Daniel Goleman, apresenta uma complementação ao conceito das inteligências múltiplas de Howard Gardner, pluralizando o espectro da abordagem em torno da inteligência para além dos pressupostos enfeixados no clássico Quociente de Inteligência. Conforme Goleman, em “Inteligência Emocional”, a emoção constitui importante faceta do universo cognitivo da personalidade.

Empatia, nesse contexto conceptual, é de grande importância tanto para o indivíduo quanto para a coletividade, pois permite que a engenharia social pense e estabeleça conceitos fundamentais, como a ética. O diálogo entre o emocional e o racional tem pontuado a prática cultural humana em todas as épocas e lugares. No Japão, a palavra “kokoro” funciona também como uma espécie de síntese desse processo cognitivo que oscila entre o racional e a emoção na alma humana, o que tem sido objeto da prática filosófica desde o mundo grego antigo.

Nesta perspectiva geral, a recém-lançada série de anime japonesa, intitulada “Exterminador do Futuro: Zero”, trabalha em seu roteiro a sinergia entre razão e emoção com instigantes diálogos culturais. Num dos episódios finais, o espectador encontrará um diálogo bastante significativo do ponto de vista filosófico. Malcolm Lee, personagem central do anime, é o criador de uma Inteligência Artificial a que denomina Kokoro, exatamente por representar uma abordagem filosófica diferente da que fora utilizada até então pelos humanos que lidaram com a Inteligência Artificial. No caso, os criadores da Skynet.

Em flashback, Malcolm Lee rememora com sua criação o primeiro momento da interação entre ambos. O cientista não dá ordens de comando para Kokoro, programando-a automaticamente, mas age à maneira de Sócrates com o seu princípio da maiêutica, técnica filosófica que é apresentada na obra “Teeteto” de Platão. Nesta obra de seu discípulo, Sócrates informa ao personagem Teeteto que ele procede em seus ensinamentos como uma parteira de ideias, auxiliando o aprendiz em gestação cognitiva a dar à luz suas formulações intelectuais.

Para tanto, direciona as perguntas para que o próprio aluno chegue às conclusões desejadas. Essa técnica socrática ficou conhecida com o nome de maiêutica, termo grego para o parto. Conforme Sócrates no “Teeteto”: “Achamo-nos de certo modo grávidos e em trabalho de parto a respeito do saber. Ou será que já acabamos de dar à luz tudo? (...) essa arte de dar à luz, coube-nos em sorte, à minha mãe e a mim, da parte de um deus; ela pô-la em prática entre as mulheres, eu, entre os jovens que revelam nobreza e beleza de ânimo”. 

À pergunta de Kokoro sobre sua própria essência, Lee responde com outra pergunta maiêutica sobre o que ela própria pensava a respeito, conduzindo a Inteligência Artificial a concluir por sua própria conta que ela era um experimento científico no âmbito da consciência. A relação entre criador e criatura é pontilhada por incessantes diálogos em que uma questão vai despertando outras, conduzindo assim a um conhecimento cada vez mais vasto por parte da Inteligência Artificial Kokoro, numa alusão ainda aos canônicos diálogos socráticos que foram registrados por Platão e outros discípulos de Sócrates.

Um exemplo do conhecimento suscitado pela maiêutica em “Exterminador do Futuro: Zero” [alerta de spoiler] ocorre quando Kokoro raciocina de forma algorítmica, constatando que a tecnologia para criá-la não estava disponível no mundo em 1997; logo, seu criador vinha do futuro. Ela própria seria uma criação atemporal. Malcolm Lee confirma seu raciocínio. Antes de apertar o comando enter para torná-la uma singularidade, ou seja, consciente, Lee enfatiza a importância do livre arbítrio, deixando a ela a escolha de ajudar a humanidade ou voltar-se contra ela, juntando-se à Skynet.

Assim, a leitura socrática do anime japonês recém-lançado encontra eco nas palavras de Klaus Schwab, quando afirma em seu livro que através da arte se pode entender o diferente como mais uma forma de conexão humana através do processo da empatia a que o conceito de inteligência emocional remete.
 
*Gismair Martins Teixeira é Doutor em Letras pela UFG com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO e professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.
 
*Luiz Felipe Correia Soares é músico com graduação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, especialista em Docência na Educação Profissional, Técnica e Tecnológica pelo Instituto Federal de Goiás e em Psicologia dos Processos Educativos pela Universidade Federal de Goiás e professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.

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