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GISMAIR MARTINS TEIXEIRA

A Semana de 22 e os povos originários

| 21.03.24 - 18:30

Às vésperas do centenário da independência do Brasil, em 1922, a intelectualidade brasileira sentiu a necessidade de uma espécie de proclamação de independência artística em relação aos modelos importados da Europa, principalmente de Portugal, que aqui aportavam com décadas de atraso às vezes.
 
De maneira paradoxal, no entanto, as vanguardas europeias serviram de inspiração aos mentores e atores da Semana de 22, um dos títulos com que a movimentação artística ficou conhecida. Inspirados pela militância cultural de Graça Aranha e Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel  Bandeira e toda uma plêiade de artistas se reuniram na semana de 11 a 18 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo para dar início ao movimento modernista brasileiro cujos desdobramentos alcançam até os dias atuais, embora alguns teóricos da historiografia literária tenham fixado seu término ora na década de 60, ora na década de 80 do século passado.
 
Nas noites da Semana de 22 se revezavam no palco artistas vários, que declamaram poemas, fizeram discursos, executaram peças musicais e expuseram pinturas e esculturas no saguão do teatro. A reação do público, totalmente pego de surpresa pela novidade, foi do espanto às vaias, assovios e outras atitudes burlescas. Acostumado à estética parnasiana com seu rigorismo formal, não seria de todo estranhável o comportamento da plateia, prenúncio do terremoto cultural que avassalaria a estrutura artística brasileira a partir de 1922.
 
O parnasianismo, com sua métrica rigorosa e espírito preso à forma, foi o bode expiatório para a nova arte que se pretendia. Fazia-se necessário, conforme acentua Alfredo Bosi em “História concisa da literatura brasileira”, voltar-se para a simplicidade do cotidiano e sua oralidade, desataviando o poema de suas complexidades, o que culminaria em construções literárias como a do poema-piada. Nas artes plásticas, o experimentalismo formal de Anita Malfatti produziria obras cuja estética fugiria aos padrões vigentes para essa linguagem artística.
 
Ainda no contexto histórico da Semana de 22, publicações e manifestos foram produzidos, consolidando o movimento. A revista Klaxon trouxe em números mensais artigos que representavam o pensamento de autores importantes do movimento, inspirando publicações congêneres. A Klaxon funcionou por nove meses. O “Manifesto Pau-Brasil” e o “Manifesto Antropofágico” funcionavam como vozes outras que se somavam na divulgação do novo ideário cultural e artístico. Em suma, a Semana de 22 propunha uma nova estética, valorizando a cultura nacional.
 
Era o grito do Ipiranga nas artes, que contava com um exército autoral de peso através de nomes como: Graça Aranha, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Ronald de Carvalho, Cassiano Ricardo, Menochi del Pichia, dentre outros. A amplitude da Semana de 22 foi intensa. A história literária viu a necessidade de dividir sua historiografia em períodos, que perfazem um total de três gerações. A primeira geração abrange de 1922 a 1930. Seus autores mais representativos na literatura são Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Poemas como “Os sapos”, de Bandeira, que invectivava contra o parnasianismo, deram o tom do novo movimento artístico.
 
Oswald de Andrade trabalharia a nova estética modernista em obras como “Memórias sentimentais de João Miramar” e Mário de Andrade produziria “Macunaíma”, a saga mítica do herói sem caráter, numa perspectiva psicologizante, segundo o crítico Alfredo Bosi. A segunda geração modernista será fixada na história literária no período que vai de 1930 a 1945. Por sua vez, o terceiro período que se desdobrou da Semana de 22 vai de 1945 até os dias atuais, segundo alguns, ou até os anos 60 do século passado. Ainda segundo outros, até os anos 80 do último século. Estaríamos atualmente no pós-modernismo.
 
A SEMANA DE 22 E O INDIGENISMO
As datas redondas funcionam como um verdadeiro atrativo para o acerto de contas, espécie de balanço geral de uma atividade qualquer. Assim, em 2022 não foram poucas as atividades comemorativas do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Neste contexto, os pesquisadores de literatura apontaram “Macunaíma”, o romance de Mário de Andrade, autor ponta de lança do modernismo brasileiro, como uma obra em que a cultura dos povos originários, os indígenas, mostra-se essencial na estruturação mitopoética andradiana.
 
Contudo, se a historiografia literária registra o indigenismo romântico de José de Alencar e Gonçalves Dias no Oitocentos, bem como o trabalho de outro modernista, Cassiano Ricardo, com seu “Martin Cererê”, obra pertencente ao Grupo Anta, que se originou do Movimento Verde-Amarelo do modernismo de 22 e também enaltecia o indigenismo brasileiro, foi  a partir da Constituição Cidadã de 1988  que os povos originários, assim como outras minorias, passaram a ter mais proeminência no cenário cultural brasileiro. Assim, já não satisfazia mais que vozes autoproclamadas falassem pela cultura dos povos originários. Era necessário que esses próprios povos dessem o seu recado de pertencimento à cultura nacional.
 
Dessa forma, as últimas décadas têm trazido ao protagonismo diversos nomes de comunidades indígenas representativas dos povos originários, assim denominados por habitarem, antes dos europeus portugueses, a terra que o processo colonizador mais tarde denominaria de Brasil. Um olhar para essa história sob a perspectiva desses povos originários pode ser conferido na obra “A Terra dos Mil Povos: História Indígena do Brasil Contada Por Um Índio”, de autoria do indígena Kaká Werá Jecupé, numa publicação da Editora Peirópolis.
 
“A Terrados Mil Povos...” é uma obra que se apresenta sob uma perspectiva única, pois pretende trazer um recorte da história dos povos originários que não consta dos livros didáticos, o que em si é profundamente lamentável. Na apresentação da obra, a líder indígena Janice Tihél, doutora em literatura e professora, registra que o trabalho de Werá Jecupé nasce da oralidade de seu povo, com quem ele aprendeu uma longa tradição narrativa acerca da vida dos indígenas brasileiros a partir de uma oralidade “que deu origem a uma tradição estética e literária indígena”.
 
A leitura da historiografia indígena a partir do trabalho de Kaká Jecupé remete o leitor a informações peculiaríssimas sobre a fascinante história brasileira dos povos originários. De início, o autor registra o equívoco designativo colonizador, que nomeou pejorativamente os habitantes que aqui já se encontravam de “índios”. Numa relativa concessão ao tradicionalismo institucionalizado, as comunidades originárias preferem o termo “indígena”, cuja etimologia remete à origem propriamente considerada.
 
A partir desse dado histórico, Kaká Jecupé passa a relacionar as particularidades culturais de diversas etnias que habitavam o Brasil há milhares de anos, referenciando dados mitológicos e lendários da constituição desses povos com base em ciclos que referenciam Tupã, num processo dialógico com elementos do mundo natural como o sol e a lua, o fogo e a água, onipresentes na mitologia dos povos que habitavam o Brasil pré-colonial aos milhões, dividindo-se em etnias variadas que ocupavam grande parte do território e o enriqueciam com uma cultura que “A Terra dos Mil Povos...” deixa entrever em seu esplendoroso fascínio.

 
GISMAIR MARTINS TEIXEIRA – Doutor em Letras pela UFG; com estágio de Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.
 


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