Em seu tratado sobre o intertexto, intitulado “Intertextualidade”, a pesquisadora francesa TiphaineSamoyault mapeia o desenvolvimento do conceito que evoluiu a partir dos postulados de Mikhail Bakhtin sobre o dialogismo em sua filosofia da linguagem. Em seu trabalho, a autora francófona apresenta muitas das sutilezas que envolvem o tema, que se configura como importante ferramenta metodológica no campo da literatura comparada.
Quem definiu o intertexto com base em Bakhtin é a semióloga húngara, Julia ?risteva, em artigos de revistas e em sua obra “Introdução à Semanálise”. Segundo Kristeva, o intertexto é o conjunto relacional que põe um texto em ligação com as demais textualidades. Em suas palavras: “Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. Antoine Compagnon, importante teórico da literatura na atualidade, afirmará de maneira semelhante: “Toda escritura é colagem e glosa, citação e comentário”.
A definição abre um leque de possibilidades relacionais muitas vezes insuspeitas. Tomando por base o roteiro, expressão literária de que estão impregnados o cinema e seus derivados, como as séries televisivas, a intertextualidade vincula campos de manifestações culturais que num primeiro olhar teriam muito pouca conexão.A relação intertextual passível de ser estabelecida entre a série “Cidade Invisível”e a monumental obra teológica “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, constitui um fascinante exemplo dessa observação.
Exibida pelo serviço de streaming da Netflix, “Cidade Invisível” é uma série brasileira produzida por Carlos Saldanha, conhecido no mundo cinematográfico pela direção de animações como “A Era do Gelo”, “Rio” e “O Touro Ferdinando”. A excelência de seu trabalho já rendeu ao cineasta brasileiro duas indicações ao Oscar para filmes de animação.“A Cidade de Deus”, por sua vez, é um clássico da teologia e da cultura. Iniciada a partir de 413 d.C. e concluída na maturidade do autor, a obra é fruto de uma das mentes mais prodigiosas da história humana: AureluisAugustinusHipponensis, mais conhecido na lusofonia como Santo Agostinho.
Linguística, semiose, teoria da relatividade, inconsciente coletivo, subconsciente, teoria da libido, são tópicos heurísticos para os quais o santo católico apontou o dedo em suas meditações espirituais, constituindo-se extraordinário precursor no tempo e no espaço dessas áreas do saber. Suas ilações sobre o tempo ainda hoje são estudadas em importantes centros acadêmicos pelo mundo.
Ao tecer considerações sobre elementos como a água e o fogo, por exemplo, em sua obra “NovumOrganum”, que inaugura a filosofia da ciência moderna, Francis Bacon remete ao mesmo espírito observador de Agostinho em “A Cidade de Deus”.
Ardoroso defensor da fé católica, Santo Agostinho escreveu essa obra especificamente como um tratado de teologia que se projeta na história humana, tendo como um de seus fundamentos a defesa da cristandade contra os romanos que atribuíam os ataques e invasões bárbaras ao abandono do paganismo por Roma.
Retórico fabuloso, o santo nascido em Taghaste, atual Argélia, divide a humanidade em dois grupos básicos, que formam e enformam a cidade de Deus e a cidade dos homens.A partir dessa dualidade radical, fruto talvez de sua herança do maniqueísmo que abraçou na juventude, a primeira cidade é constituída pelos cristãos, ao passo que os não cristãos representam os cidadãos da segunda urbe.Ambas as cidades convivem juntas em suas caminhadas através da história no plano terreno.
Com esse eixo em mente, Santo Agostinho exercita seu colossal poder de argumentação em favor de uma exegese e de uma apologética cristã. Estabelecida essa dicotomia espiritual de ambas as cidades, o bispo de Hipona abre caminho para a síntese dialética que a partir de então poderia ser desenvolvida.
A DIALÉTICA DE “CIDADE INVISÍVEL”
A concepção cultural que serve de base para o enredo da série “Cidade Invisível”é de cunho dialético. E é muito sugestiva. Carlos Saldanha parece ter se inspirado na dicotomia agostiniana, que contrapõe a cidade de Deus à cidade dos homens, para estabelecer o pano de fundo cultural de sua série. “Cidade Invisível”, que estreou no início de fevereiro na Netaflix, que já aprovou uma nova temporada devido ao grande sucesso internacional, apresenta em sua narrativa uma interessante adaptação do folclore brasileiro.
Personagens como a Cuca, o Saci-Pererê, a Yara Mãe D'Água, o Boto Cor-de-Rosa e o Curupira, além de outros,estão presentes com seus dramas, na verdade, bem humanos,tendo suas origens vinculadas a problemas sociais que, de resto, dão o tom da série, pois os personagens do folclore [alerta de spoiler] têm de lidar com a ganância do homem de ascendência eurocêntrica que incendeia a floresta cara ao lendário panteão, perseguindo-os mesmo após a morte, na condição de alma vingativa do além.
Assim, resultante da tese e da antítese das cidades divina e humana, tem-se a síntese da cidade invisível que surge da magia do folclore. Na série, porém, os seres folclóricos são párias das duas cidades, constituindo-se um intertexto não só conceptual mas também mais objetivo. Ao rastrear a presença da urbe divina na história a partir da “Bíblia”, Santo Agostinho estuda no Livro 16, capítulos 8 e 9, os fenômenos teratológicos “de que a História dos povos da fé”. A história dos povos a que se refere o autor remete tangencialmente ao conceito de folclore, o saber popular, que muitas vezes é transmitido através de lendas.
Santo Agostinho enumera as personagens de povos distantesnestes termos: “Assegura-se que alguns têm um olho no meio da testa, que outros têm os pés virados para trás. [...] Contam, de igual modo, existirem homens de velocidade espantosa; têm nos pés uma só perna e, quando andam, não dobram a curva da perna”. Caso existam homens assim, advoga o santo católico, teriam Adão por pai em humanidade e constituiriam parte maior de um mosaico que no conjunto seria belo, o que evidenciaria a variedade da criação e da estética divinas.
Assim, em “Cidade Invisível”, duas personagens do folclore brasileiro, o Saci-Pererê e o Curupira, aproximam-se bastante do relato de história de povos apresentado por Agostinho. A propósito, o nome humano do saci na série é Isac, um anagrama de sua real identidade lendária. Ambos, como as demais personagens, mantêm-se disfarçados de humanos, mas quando assumem suas verdadeirasnaturezas se apresentam nas características que lhes atribui o folclore brasileiro.
Dessa forma, além do conceito agostiniano de cidade, aqui compreendida como sendo a de um grupo com características culturais comuns no tempo e no espaço, a série do brasileiro Carlos Saldanha possui esse outro instigante diálogo de intertextualidade com a narrativa global de Santo Agostinho em “A Cidade de Deus”.Não deixa de ser um intertexto bizarro, mas que encontra ecos específicos na lenda da mula sem cabeça, importante figura do folclore brasileiro.Em uma das versões de sua origem, ela seria uma moça castigada por aventurar-se amorosamente com um padre. Essa variação intertextual específica, que demonstra quão rico em possibilidades é o conceito de Kristeva, nem Santo Agostinho pôde imaginar.
*Gismair Martins Teixeira é pós-Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.