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Ana Carolina Fleury

Caso João de Deus: aspectos penais e processuais penais

| 17.12.18 - 12:12
 
É provável que você leu ou ouviu falar sobre o caso do médium João de Deus nos últimos dias, mas caso não saiba sobre o que estou falando, vamos fazer um resumo dos fatos e uma análise dos principais aspectos jurídicos que permeiam a situação.
 
O médium está sendo acusado de abuso sexual por mulheres que buscaram atendimento espiritual na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, Goiás. Os mais de trezentos relatos reunidos até o momento indicam que, depois das sessões, o médium supostamente oferecia para as vítimas atendimento particular, momento em que os abusos seriam cometidos.
 
Bom, aqui não iremos fazer juízo de valor, iremos analisar friamente alguns aspectos jurídicos, penais e processuais penais relacionados ao caso: em quais crimes incorriam suas condutas? Seria uma situação de crime continuado? As pessoas que trabalham lá vão responder? Como reconhecer estupro sem o exame de corpo de delito? Haveria decadência ao direito de queixa? A prisão era realmente possível?
 
Em primeiro lugar, analisando de forma geral as notícias e os depoimentos que saíram na mídia, podemos identificar condutas que podem ser encaixadas, principalmente, em duas tipificações penais: os crimes de estupro e a violação sexual mediante fraude, previstos nos artigos 213 e 215, respectivamente.
 
Estupro é, infelizmente, um crime que vemos com mais frequência em nosso dia a dia. Basicamente ele consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Esta é a definição que consta no Código Penal. Em que ação, entretanto, estaria configurado esse crime no referido caso?
 
Bom, constam nos depoimentos que as vítimas eram coagidas, pressionadas e ameaçadas pelo médium a realizar o que ele queria. Nos crimes de estupro, a grave ameaça não precisa ser física, segundo o STF e STJ. Segundo os relatos das vítimas que, em sua maioria, já estavam sensibilizadas, buscando uma cura, o médium as constrangia dizendo que se não aceitassem ou fizessem o que ele estava dizendo, coisas ruins iriam acontecer a elas e doenças não seriam curadas, por exemplo. Lembrando que o acusado era considerado um ser místico, com poderes transcendentais, figurando como uma liderança.
 
A violência sexual mediante fraude é mais conhecida como estelionato sexual e é configurada perante a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém, diante algum meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. Neste tipo penal, o autor utiliza de artifícios, engodos, ardis para esconder a intenção libidinosa de seus atos. De forma resumida, engana a vítima para conseguir concretizar sua intenção sexual.
 
Em segundo lugar, há dúvidas se a conduta configuraria um crime continuado que, segundo o Código Penal, em seu artigo 71, é quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro. Pois é, pela simples leitura, percebe-se que não seria caso de crime continuado, já que, em sua maioria, não são o mesmo crime e nem possuem contextos ligados entre si.
 
Na verdade, os crimes estariam em concurso material e não como crimes continuados. Segundo o artigo 69 do Código Penal, há concurso material de crimes quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Neste caso, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. Ou seja, as penas dos crimes devem ser somadas.
 
Outro importante questionamento é o que envolve as pessoas que trabalhavam junto ao médium. É um delicado ponto que deverá ser investigado a fundo, já que para que tais pessoas respondam judicialmente a algum crime, elas deveriam ter o conhecimento do que acontecia. Caso existisse, por parte das pessoas que trabalhavam de forma direta com João ‘de Deus’, o conhecimento dessas condutas e, mesmo assim, elas continuassem com os encaminhamentos, seriam responsabilizadas de que forma? Pois bem, devem responder pelos mesmos crimes citados acima (estupro e estelionato sexual), contudo, não na forma de agentes principais, mas na figura de garantidores, desde que demonstrado.
 
Mais uma dúvida com que nos deparamos é: como reconhecer o estupro sem o exame de corpo de delito? Por partes, o nosso Código de Processo Penal em seu artigo 158, diz que quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Lendo apenas essa parte da lei seca, é possível a interpretação errônea do caso, já que as denúncias só vieram à tona agora e, na época, não foram realizados os exames. É preciso ficar claro, entretanto, que resta pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça no sentido de que nos crimes sexuais o exame de corpo de delito é dispensável. E sabem qual é a prova mais relevante que o substitui? O depoimento da vítima.
 
Outro ponto seria a respeito da decadência do direito de queixa. Em alguns casos, de fato, a decadência pode ter acontecido, entretanto, ainda resta um enorme universo de crimes e denúncias válidas. De forma resumida e como exemplo, a ação penal é pública incondicionada no caso de menores ou vulneráveis, não havendo, portanto, a decadência e, sim, a prescrição. O prazo começa a ser contado, nesses casos, depois que a vítima completa seus dezoito anos, ou seja, atinge a maioridade.
 
Por último, muitos comentaram que não seria necessária a decretação da prisão preventiva. Disseram que bastaria afastá-lo do exercício de suas práticas religiosas. Talvez, esse seja um discurso apaixonado ou inundado de razões religiosas, mas que é contrário ao que diz o Código de Processo Penal. Para a decretação da prisão preventiva, há necessidade dos pressupostos, dos fundamentos e das condições de admissibilidade, presentes nos artigos 312 e seguintes. Percebam que, neste caso, todo o necessário para a decretação da prisão está presente e, por isso, foi determinada.
 
Depois de ter sido considerado como foragido, pois não se entregou nas 24 horas seguintes à determinação da prisão, um dos últimos ocorridos do caso foi a efetiva e esperada concretização da prisão de João Teixeira de Faria, o João de Deus. Estaremos vigilantes sobre os desdobramentos do caso, esperando que não haja a mistura da religião com o direito e que a justiça seja feita, considerando nossas leis e Constituição Federal.
 
 
*Ana Carolina Fleury é advogada; professora universitária; mestranda em Educação; especialista em Direito Público, Direito Penal e Direito Processual Penal; vice-presidente da Comissão Especial de Valorização da Mulher da OAB/GO; membro da Comissão de Direitos Humanos da Abracrim-GO e atua pelo escritório Vellasco, Velasco & Simonini Advogados.

Comentários

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  • 18.12.2018 14:20 Wander Barbosa

    Excelente artigo, Dra. Ana Carolina. Aqui, minhas singelas considerações: É inadmissível que uma pessoa violentada sexualmente mantenha-se calada e conivente com essa prática e pior ainda, ainda que tivesse sido vítima de seu algoz, ainda retornou até ele por 1, 2, 3, 4, 5 ou mais vezes. Não se sabe os motivos de cada uma delas. Devemos-lhe respeito e cuidado com o trato, haja vista que, em se tratando de pacientes do Médium, decerto o estado emocional haveria mesmo de estar fragilizado, o que importa na obrigatoriedade de se exaurir condições mentais por ocasião do crime. Entretanto, Dormientibus Non Sucurrit Ius (A lei não socorre aos que dormem) e no caso, a legislação penal é fulminante. Decadência, em se tratando de direito criminal, consiste na perda do direito de ação, pelo ofendido, ante sua inércia, em razão do decurso de certo tempo fixado em lei. A consequência do reconhecimento da decadência é a extinção da punibilidade, nos termos do artigo 107, inciso IV, segunda figura, do Código Penal. Via de regra, consoante artigo 103 do Código Penal e artigo 38 do Código de Processo Penal, o prazo decadencial é de 6 (seis) meses, contados da seguinte forma: a) da data em que o ofendido veio a saber quem é o autor do crime (ciência inequívoca da autoria), no caso de ação penal privada e ação penal pública condicionada à representação e b) do dia em que se esgota o prazo para o oferecimento da denúncia, nos demais casos. Segundo o art. 103 do CP, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação, se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contados do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º, do art. 100, (isto é, da ação privada subsidiária) do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia. Em conclusão, a maioria das vítimas, senão todas, que denunciaram o médium, decaíram no seu direito de queixa ou representação, de modo que, salvo eventual delito praticado nos últimos 180 dias, nenhuma das ações irá prosperar, haja vista que deverá o juízo, quando do recebimento da denúncia, reconhecer de plano a ocorrência da decadência.

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