Adriana Marinelli e Mônica Parreira
Goiânia - O drama já dura quatro anos. Mãe de cinco filhos, Selma (nome fictício) lamenta que os dois mais velhos, um de 20 e outro de 16 anos, tenham deixado a vida honesta de lado para se dedicarem ao mundo do crime. Natural do Maranhão, Selma veio com a família para Goiânia há dez anos na tentativa de conseguir oferecer um futuro mais digno aos filhos. No entanto, a empregada doméstica chega a falar em arrependimento quando lembra do dia em que saiu de sua terra natal.
Os dias difíceis, as noites mal dormidas e as constantes preocupações começaram ainda em 2010, quando o filho mais velho tinha 16 anos. Depois de certo tempo trabalhando para ajudar nas despesas de casa, F.C.S. viu no roubo de carros a "oportunidade ideal" para lucrar com facilidade. O garoto foi apreendido diversas vezes em flagrante pela prática ilegal e permaneceu internado por longos períodos no Centro de Internação Provisória (CIP), instalado no 7º Batalhão da Polícia Militar, no Jardim Europa, e no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), no Conjunto Vera Cruz I, ambos na capital.
Estudo realizado durante 16 meses e divulgado em 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que roubo foi a causa de 36% das internações de menores pelo país, sendo também o principal motivo de internação entre os adolescentes reincidentes. Entre os menores entrevistados em cumprimento de medida de internação, 43,3% já haviam sido internados ao menos uma vez. Na região Centro-Oeste, conforme consta no relatório, 45,7% dos adolescentes em conflito com a lei são reincidentes.
"A reincidência entre menores em conflito com a lei em Goiás passa dos 50% facilmente"
(Mônica Araújo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO)
De acordo com a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Goiás (OAB-GO), Mônica Araújo, a situação em Goiás é ainda mais preocupante. "A reincidência entre menores em conflito com a lei em nosso Estado passa dos 50% facilmente", diz. É dessa triste estatística que o filho de Selma faz parte.
Mônica Araújo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO (Foto: Mônica Parreira/A Redação)
Para Mônica, a precariedade dos centros e a falta de programas de reinserção contribuem para que os menores voltem a praticar atos infracionais. "Fizemos algumas entrevistas com os adolescentes nos próprios centros de internação e eles reclamam muito de alimentação, por exemplo, que não é suficiente. Reclamam da questão da estrutura, que é péssima. Banheiro precário, instalações precárias. Há superlotação", revela.
"Não há um programa esportivo adequado para fazer o adolescente gastar sua energia, não tem escola como deveria, um curso técnico de computação, para que ele aprenda alguma profissão. Então ele [o adolescente infrator] simplesmente é retirado da sociedade para ficar preso como um animal".
Selma garante que a situação é mesmo grave e as medidas não são eficazes. "Eu sempre acreditei na recuperação dele, mas parecia que cada vez que ele saía do Centro estava pior. Estou perdendo meu filho para o crime", lamenta a mãe, que não deixa de se culpar pelo destino tomado por F.C.S. Selma conta que o filho chegou a ser vítima de uma tentativa de homicídio em uma das internações no CIP em 2012. "Ele quase morreu enforcado por outros adolescentes e ninguém me disse nada. Só fiquei sabendo dois dias depois quando fui visitá-lo e vi as marcas no pescoço dele".
Para Selma, cada vez que F.C.S. era liberado do atendimento socioeducativo havia a esperança de uma nova oportunidade de recomeço para o filho, mas seu desejo de mãe ainda não se concretizou. O garoto continuou envolvido com o roubo de carros e, mais tarde, aos 17 anos, passou a andar com uma arma de fogo para onde quer que fosse.
Segundo Selma, as idas e vindas aos centros de recuperação prejudicaram ainda mais o comportamento do filho (Foto: Adriana Marinelli)
"Cada vez que meu filho voltava para mim ele estava pior", lamenta. Mesmo com pouco conhecimento de como deveria ser o tratamento ideal para o adolescente infrator, Selma não poupa críticas aos centros por onde o filho passou. Segundo ela, as idas e vindas aos centros, além de não conseguirem recuperar o filho, fizeram com que o jovem saísse mais marginalizado.
"Eu sempre acreditei na recuperação dele, mas parecia que cada vez que ele saía do centro estava pior. Estou perdendo meu filho para o crime."
(Selma [nome fictício], empregada doméstica)
Sem oportunidade de receber um acompanhamento psicológico, Selma garante que foi nas orações que encontrou forças para continuar lutando pelo filho. No entanto, já com 18 anos, F.C.S. decepcionou a família outra vez. "Ele voltou a ser preso roubando carros e já esteve por duas vezes na Casa de Prisão Provisória", conta. "Mas ele não tem jeito! Estava livre e até foi morar com uma moça, mas foi preso," lamenta.
Em agosto deste ano, dois meses após ser liberado do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, F.C.S., já com 20 anos, foi preso novamente. "Ele me contou que estava na casa da namorada e que a polícia chegou lá durante a madrugada". Mesmo sem muito apoio do marido, que chega a afirmar que não acredita na recuperação do filho, Selma não o abandona e segue semanalmente para o complexo prisional para abraçar o filho. "Ele é muito seco e não se abre comigo, mas faço questão de ir vê-lo toda semana. É muito caro, pois tenho que ir de táxi ou pagar alguém para me levar, mas me esforço".
Não bastassem todas as dificuldades enfrentadas por Selma e pelo marido para tentar livrar F.C.S. da criminalidade, o casal ainda foi surpreendido por outro baque. O filho do meio, D.S., de 16 anos, acabou seguindo os perigosos passos do irmão. "Ele veio com uma surpresa ainda mais desagradável. Além de também começar a roubar carros, se afundou nas drogas", lamenta. "Até para dentro de casa ele traz", completa.
De acordo com o CNJ, mais de 80% dos adolescentes internados em cumprimento de medidas socioeducativas em Goiás são usuários de drogas.
Apreendido pela primeira vez com um veículo roubado em fevereiro deste ano, D.S. foi liberado em seguida, mas voltou a repetir o erro dias depois. Para poder ver o filho em liberdade, Selma precisou usar toda sua economia que estava sendo reservada para a compra da casa própria da família, já que moram de favor em um barracão. "Gastamos quase R$ 7 mil com os serviços do advogado. Mas não adiantou nada, pois ele [D.S.] voltou para mesma vida que estava levando".
Selma voltou a ter na família a prova viva da reincidência no mundo do crime antes mesmo do filho completar a maioridade.
Para o delegado Kleyton Manoel Dias, titular da Delegacia de Polícia de Apuração de Atos Infracionais (DEPAI), casos como os de F.C.S e D.S. são muito comuns na capital goiana. De acordo com ele, o sistema de recuperação dos garotos é falho. "Esse menor que poderia estar internado, cumprindo medida socioeducativa com educação de qualidade, na verdade é colocado em liberdade, por falta de estrutura no próprio Estado, e estão tão ou mais despreparados para conviver em sociedade do que quando entraram".
Delegado Kleyton Manoel Dias, titular da Depai (Foto: Mônica Parreira/A Redação)
"A sua necessidade por bem de consumo não diminui, só aumenta. Não consegue parar. Nossa capacidade, considerando os centros de internação, não consegue atender todos os jovens. Eu acho que muito poderia ser melhorado. Uma vez internado, esses adolescentes não poderiam sair de lá sem um compromisso educacional completo. Nós precisávamos internar esses menores para incutir neles a cultura de "ser alguém" e para isso eles precisam estudar e se preparar. Esse adolescente só poderia sair do centro após uma boa formação, talvez até já encaminhado para o mercado de trabalho", conclui.
Não é preciso pesquisar muito para identificar que o perfil dos jovens infratores passou por mudança. Pelos mais variados motivos, os adolescentes estão se arriscando cada vez mais cedo em práticas ilícitas. "Temos que parar para pensar na extremidade que algumas situações alcançaram", afirma o advogado Dácio Anacleto, conselheiro tutelar que atua na região de Campinas, em Goiânia.
Marcos (nome fictício), de apenas 9 anos, é uma dessas crianças que preferiu carregar armas e drogas nas mãos que deveriam utilizar apenas lápis e borracha. O menino, segundo o conselheiro tutelar, tem 20 passagens por furto, roubo a mão armada e tráfico de drogas.
"A situação dele é bem crítica. Hoje ele está em um abrigo, mas não sei até quando, pois ele já fugiu de várias outras casas de acolhida", revela. "Começamos a acompanhar esse menino há quatro anos. Ele cometeu o primeiro 'deslize', como ele mesmo diz, aos 5 anos, quando roubou um celular na creche. É assustador imaginar um garoto de apenas cinco anos armado com uma faca ameaçando uma professora", complementa.
Um levantamento do Conselho Tutelar de Campinas mostra que 20% dos casos levados à unidade são de crianças ou adolescentes infratores. "No caso desse garoto de 9 anos, nós ficamos ainda mais preocupados. Viciado em drogas, ele está sendo ameaçado por traficantes", diz.
"O lamentável é que o Marcos é apenas mais um em uma lista que só tende a crescer ainda mais. Ele faz parte da triste relação de crianças que trabalham de forma dedicada para o crime, sem se importar se serão presas uma, duas, três ou várias vezes. Afinal, como eles mesmos dizem: 'não dá nada'", finaliza o conselheiro.
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