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Por Marcelo Ribeiro

Crítica de cinema - 'Azul é a Cor Mais Quente'

Filme estreia em Goiânia nesta sexta-feira (3) | 02.01.14 - 16:23 Crítica de cinema - 'Azul é a Cor Mais Quente' (Foto: divulgação)
Marcelo Ribeiro
Especial para A Redação

Goiânia - Dirigido pelo franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, o filme Azul é a cor mais quente entra em cartaz nessa sexta-feira, dia 03 de janeiro, nos Cinemas Lumière do Shopping Bougainville. A obra de 175 minutos foi premiada com a Palma de Ouro em Cannes, e o presidente do júri da edição de 2013 do Festival, Steven Spielberg, declarou que ele e os demais jurados foram "enfeitiçados" pela "profunda história de amor" de Adèle (interpretada pela estreante Adèle Exarchopoulos) e Emma (interpretada pela jovem Léa Seydoux).

O "feitiço" do filme de Kechiche decorre de três aspectos de sua construção dramática: o excelente desempenho das atrizes que interpretam as protagonistas, que sustenta a intensidade dos sentimentos e das emoções em tela; o rigoroso trabalho de encenação do diretor, em que são privilegiados close-ups e planos fechados, em meio às excelentes músicas da trilha sonora que embala as imagens a partir de dentro da narrativa; a intensidade dos diálogos e do enredo que estes ajudam a construir, apenas vagamente baseado no romance gráfico Le bleu est une couleur chaude, da artista francesa Julie Maroh, que cedeu os direitos sobre a obra para Kechiche, mas se manteve distante durante os cinco meses e meio de produção.

O título original do filme, La vie d'Adèle, evidencia seu distanciamento em relação ao romance gráfico, que foi adaptado com ampla liberdade por Kechiche. A liberdade criativa do diretor corresponde, no interior da narrativa, à liberdade representada por Emma, com seus cabelos azuis e sua decidida busca de formas de expressão artística de seus sentimentos. Ao conhecê-la, Adèle inicia um período de autodescoberta, que coincide com sua passagem da adolescência à idade adulta. Antes de conhecer Emma, Adèle é uma garota deslocada, na escola e em casa, em busca de algo que preencha seu vazio interior. Desde o primeiro encontro, mesmo que passageiro, em meio aos movimentos da cidade, a figura de Emma começa a transformar a vida de Adèle por completo.

Delicadeza e densidade
O cinema de Kechiche é ao mesmo tempo delicado e denso. Os close-ups dos rostos e dos corpos ressaltam os sentimentos que os atravessam, em meio à descoberta vagarosa do amor, à continuidade cotidiana da vida em comum, à transformação gradual do relacionamento e das fantasias que o acompanham. No filme, a história de amor entre duas mulheres aparece, antes de tudo, como uma história de amor qualquer, na qual podemos reconhecer os traços de nossos próprios relacionamentos, independentemente de gênero e de sexualidade. A paixão arrebatadora, o desejo desmedido, a dor da separação, o carinho persistente, apesar da desilusão: está tudo ali, entre Adèle e Emma, como esteve, está ou estará entre nós, em algum momento de nossas aventuras e desventuras amorosas.

Ao mesmo tempo, o filme causa polêmica, em primeiro lugar, pelo simples fato de representar um relacionamento lésbico e, especialmente, por encenar sem restrições o sexo entre mulheres (como em uma das cenas mais comentadas do longa, que dura mais de 6 minutos). Se a mera representação da sexualidade lésbica pode fazer rir nervosamente, desagradar e até chocar os mais conservadores, a forma que Kechiche escolheu para essa representação confere ao filme a capacidade de incomodar tanto os mais conservadores quanto parte das lésbicas, que reprovam a encenação do sexo lésbico orquestrada pelo diretor como uma fantasia heterossexual, incapaz de fazer jus à experiência da diferença de orientação sexual e preso às convenções heteronormativas que orientam o imaginário dominante.

Seja como for, as cenas de sexo explícito pertencem à constelação de sentimentos que se tece entre as protagonistas. De fato, um dos cartazes de divulgação do filme nos Estados Unidos comenta, indiretamente, a polêmica sobre sexo explícito ao avisar que o filme "pode conter sentimentos explícitos". O trabalho de encenação ressalta os rostos, as fisionomias em que se tornam visíveis os sinais das emoções que tomam conta das personagens, como se um rosto não fosse capaz de mentir. Em cada close-up, e nos planos mais distanciados que se estabelecem entre eles, como sua suave tecelagem, a alegria ou a tristeza, o prazer ou o tédio, a atração sexual ou o desinteresse tornam-se visíveis através das faces, dos olhos, das bocas, das lágrimas, da saliva, do catarro. Entre os sinais dos corpos, a câmera de Kechiche revela uma verdadeira obsessão em relação aos líquidos, às secreções, aos humores, sobretudo os de Adèle.

A revelação dos sentimentos das personagens por meio dos sinais corporais é potencializada pelo uso da música, que amplifica o alcance do feitiço que tanto cativou Spielberg e os demais jurados em Cannes. O primeiro encontro entre Adèle e Emma, ainda sem palavras, apenas uma troca de olhares, ocorre sob o som onírico de um instrumento chamado Hang, criado por Felix Rohner e Sabina Schärer, da empresa PANArt Hangbau AG (a música pode ser ouvida também no início do trailer do filme).

O instrumento é tocado por um músico de rua, sentado numa das calçadas por que Adèle passa. A música - que pertence ao espaço da realidade narrativa e que afeta as imagens a partir de dentro do que está sendo encenado - prolonga-se mesmo com o deslocamento da protagonista. Sua condição se transforma: em vez de referente em cena, que Adèle escuta tanto quanto o espectador, a música torna-se um aspecto expressivo do trabalho de encenação, que se dirige apenas ao espectador. No plano final, a música desse momento inaugural da aventura de Adèle se repete, enquanto seu destino se abre novamente para algo que o filme não nos apresenta, algo que permanece sem nome, cujos contornos incertos podemos apenas tentar adivinhar ou imaginar, depois que as luzes se acendem na sala de cinema.

Marcelo Ribeiro é pesquisador e crítico de cinema e audiovisual. Autor e editor do incinerrante. Doutorando em Arte e Cultura Visual na UFG.

Comentários

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  • 03.01.2014 18:05 Nancy de Melo Batista Pereira

    Bravo! Não consigo prestar muita atenção às trilhas sonoras, adorei a observação!

  • 03.01.2014 16:53 Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

    Olá, Sou o autor da crítica e gostaria de indicar dois complementos que publiquei em meu site. O primeiro é sobre o tema da heteronormatividade, que menciono no meio da crítica, e está em: http://incinerrante.com/heteronormatividade-e-representacao-em-azul-e-a-cor-mais-quente/ O segundo é uma análise mais aprofundada do filme, para quem já assistiu, e está em: http://incinerrante.com/azul-e-a-cor-mais-quente/ Abraços!

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