Goiânia - Há exatos 20 anos elas me acompanham. São duas grandes caixas de papel, repletas de cartas, bilhetes, e-mails e cartões. A primeira surgiu em 1993, quando entrei para a faculdade de Jornalismo e, de repente, me vi repleta de bilhetes engraçadíssimos das colegas de turma, que, definitivamente, não poderiam ser descartados.
Os tais bilhetes evoluíram e, com o tempo, deram lugar a longas cartas. Dores de cotovelo terríveis, declarações de amor que podiam ser feitas apenas às grandes amigas porque os alvos da paixão não estavam lá para ouvi-las; lamentos de amores de verão que não subiram a serra, lembranças do que poderia ter sido e não foi.
O hábito de reunir escritos dos colegas de faculdade acabou fazendo com que eu também começasse a guardar naquela caixa todas as palavras recebidas que me tocaram de forma especial. Cartas de uma mãe objetiva e de um pai extremamente prolixo; cartões apaixonados de ex-namorados, pedidos de desculpas, cartões de aniversários, cartões postais, todos eles estão lá.
Dentro de uma das caixas há um envelope especial. Um envelope pardo e comprido, no qual guardo cuidadosamente dezenas de e-mails impressos, trocados durante três anos consecutivos com um grande amigo. Um amigo daqueles que, na impossibilidade de estar sempre presente fisicamente, estava lá com suas palavras.
Começamos a trocar e-mails mais frequentemente poucos meses antes de eu partir para a Bélgica, para fazer meu mestrado. Nos correspondemos até o ano seguinte do meu retorno ao Brasil. Ao longo desses 36 meses, falamos de tudo: cinema, música, jornalismo, tristezas, alegrias, amores, desamores, livros e, claro, de amizade.
Creio que ele nunca soube o quanto suas palavras me trouxeram de novo à vida nos momentos mais difíceis em que estive fora, quando a neve, o frio hostil e as pessoas extremamente reservadas que me cercavam me faziam ter a sensação de ser uma estrangeira não apenas em um país, mas na minha própria alma.
Naqueles dias, esses e-mails tão delicados eram o bálsamo que o meu coração sofrido precisava. Saber que alguém do outro lado do mundo se lembrava de mim e tinha o cuidado de expressar em palavras tudo o que pudesse me emocionar, me fazer rir ou refletir, era a maior prova de que estar perto não é mesmo físico.
Compartilho com você, então, leitor, um pouco das palavras desse amigo tão querido, em alguns dos melhores trechos dos nossos e-mails:
Encontros e desencontros (o filme)
“Lembra da cena final do filme? Quando Bob sussurra algo no ouvido de Charlotte, e a diretora não permite que a gente escuta o que está sendo dito? Depois do sussuro, a gente só escuta o ‘ok’ dela, que é respondido com outro ‘ok’ dele. Achei a cena original e linda: nada que fosse para a gente ouvir conseguiria superar a profundidade daquilo que permanece em segredo (contrariando o provérbio "o que é bom em segredo, é melhor em público").”
Aniversário e metáforas abolidas
“Fazer aniversário nos leva para a normalidade, a adaptação ao voo rumo à velhice, o pleno silêncio dos afetos... As pessoas estão sempre perguntando como é fazer 20, 25 ou 30 anos. 40, então, é a idade predileta para se questionar. Acham que perguntar sobre os 40 é maldade tão grande como perguntar como anda aquela doença grave.
- Como é fazer 40 anos?
O que querem saber, na verdade, é se existe alguma possibilidade de também acabarem lá, aos 40, e se é possível chegar com alguma vitalidade. Encaro de outro jeito, nem acho que seja de outro ângulo. Fazer anos, ficar doente, enlouquecer, tudo pode ser a liberdade. Liberdade daqueles que já não têm nada a perder e podem se dar ao luxo de recusar qualquer pacto covarde, comportado, de conveniência ou de mediocridade com a vida.
Se não garante, pelo menos aponta para a possibilidade de liberdade. Loucura e velhice fazem com que as metáforas sejam abolidas, a ironia se torne impossível e as palavras sejam tratadas como coisas simples — o que as torna ainda mais perigosas do que de costume. 'Viver é perigoso'. E bom.”
Ser humano e ser cínico
“O ser humano se diferencia do ser cínico porque ele tem mais ironia que sarcasmo; mais suavidade que preguiça; mais sutileza que leviandade; mais raiva que ódio; mais humor negro que pessimismo; mais arrepios que frieza; mais movimento que pressa, mais dúvidas que angústias; mais fome que voracidade; mais amigos que parentes; mais conhecimento que fama; mais rituais que religiões; mais forno que fogão...”
Repórteres de política
“Por vezes, me sinto como um pacifista que, por coincidências várias e circunstâncias que não domina, toma parte numa guerra e de repente se encontra numa trincheira, sem saber contra o que ou contra quem está atirando. Acho que qualquer repórter de política ingênuo deve se sentir assim.”
Jornalista perfeito
“A ideia de ‘jornalista perfeito’ criou um paradigma impossível de ser igualado, um padrão tão alto de exigência que nos tornamos uns chatos, uns nostálgicos azedos que não se contentam com um simples triunfo, com um simples furo. Não, um jornalista, pelo menos razoável para nós, tem que ter um texto nota 10, tem que ser um bom apurador, humilde, ágil e, sobretudo, ético. Menos que isso não serve.
É como se eu fosse encontrar uma mulher perfeita, uma moça com o rosto da Nastassja Kinski, a inteligência da Marilena Chauí e o brilho nos olhos da Marta Suplicy. Ou um jogador com o cabeceio de Pelé, o arranque de Ronaldinho e os dribles de Garrincha. Em boa parte a criação desse mito é culpa nossa mesmo. O sonho sempre é mais bonito que a realidade. Enquanto estivermos presos a esse fantasma, a essa utopia inatingível, nunca nos contentaremos com nada.”
Adriana Calcanhoto (o show)
“Calcanhotto é mesmo um show à parte. Voz leve como o lençol, como nesse ouvido sobressaltado, o que ganha corpo é uma tensão absoluta de vida, uma concentração total de afeto, em meio à terra devastada desse mundo tão errado, tão normal, tão medíocre.
(...) a música acaba, e a gente sai do teatro cheio de si. Cheio de vida. Até o Centro de Convenções achei lindo, como se fosse uma Torre Eiffel iluminada ao longe. A cidade brilhante e cética fervilha ao redor. Mas o que a gente escuta, afinal, pelo resto da noite, e com sorte pelo resto dos dias, é aquela nota do violão de Calcanhotto. Vambora.”
P.S – Caro amigo, sei que por motivos vários nossas vidas se distanciaram. Mas como também sei que, à sua maneira, você sempre encontra uma forma de velar por mim e se fazer presente, imagino que esteja lendo este texto. Se assim for, preste bastante atenção neste recado: você faz falta.