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Gismair Martins Teixeira

O mito, a jarra de Pandora e uma mãe heroica

| 20.05.16 - 09:12
Em “O Mito do Eterno Retorno”, um dos maiores estudiosos no século 20 da religiosidade humana, o romeno Mircea Eliade, afirma acerca do mito: “O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”. Dentro desse panorama de multiplicidade e complementaridade apontada por Eliade está, naturalmente, o momento histórico específico que assinala o ponto de chegada de um amplo “devir”, termo filosófico que é assim apresentado pelo “Dicionário Priberam”: “Movimento permanente pelo qual as coisas passam de um estado a outro, transformando-se”.
 
Um exemplo curioso e apaixonante das complexidades insuspeitas que o mito pode assumir, tanto em sua abordagem quanto em sua interpretação, é a fascinante história de vida da enfermeira polonesa, Irena Sendler. Sua relação possível com o campo da mitologia envolve a singular personagem denominada Prometeu. Dois autores clássicos da Grécia Antiga escreveram sobre Prometeu e a sua peculiar narrativa mitológica. Em “Os Trabalhos e Os Dias” e em “Prometeu Acorrentado”, Hesíodo e Ésquilo, respectivamente, discorrem acerca da vida desse personagem bastante peculiar. Em ambas as obras esse titã é apresentado como o personagem que rouba o fogo do Olimpo, a morada dos deuses comandada por Zeus, para doá-lo à humanidade.
 
Em retaliação, o poderoso deus grego criará, com o auxílio dos demais deuses, uma belíssima mulher, que será enviada à humanidade portando uma jarra, ou uma caixa, conforme a tradução portuguesa disponível. Quando aberta, essa jarra espalha todas as mazelas possíveis e imagináveis. Fechada por ordem do próprio Zeus, apenas um atributo sobra ergastulado no fundo da jarra: a esperança. Alguns comentadores propõem que ela seria o último mal para os humanos, por representar uma vã expectativa que muitas vezes não se concretiza. Esse olhar pessimista, contudo, pode ser substituído por uma visão interpretativa mais otimista. Ou seja, se os males são muitos, sempre fica a esperança, que por vezes acaba concretizando-se, de que eles podem modificar-se para melhor.
A vida da polonesa Irena Sendler é um exemplo concreto de que a esperança pode servir como um bálsamo aos outros males, por vezes gigantescos. Nascida no ano de 1910 em Varsóvia, Polônia, Sendler desde cedo revelou vocação pelas causas humanitárias, tornando-se ativista dos direitos humanos durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, em 1942 o regime nazista criou na cidade natal de Sendler o famigerado gueto onde foram alocados os judeus e outras etnias aprisionadas pelo ódio insano de Hitler e seus comandados. Sob a alegação de sanitarismo, Sendler ofereceu seus serviços de enfermagem ao exército alemão, sobretudo para a limpeza de esgotos, com a desculpa plausível de se evitarem doenças contagiosas.
 
Os comandantes aquiesceram, certamente não por piedade, mas pelo temor de caírem vítimas das doenças possíveis.  Sob a autorização dos oficiais nazistas da Gestapo, a enfermeira se entregou ao serviço com dedicação incomum. Na realidade, porém, utilizava-se do artifício para retirar crianças judias do gueto de Varsóvia escondidas em carrinhos de limpeza, sacos de lixo, caixas e em tudo o mais que possibilitasse burlar a vigilância dos carrascos alemães. Quando descoberta, foi submetida a torturas, tendo alguns ossos de seu corpo quebrados pela truculência dos Eichmans de plantão. Condenada à morte, Sendler foi salva por um soldado alemão dissidente do espírito eichmansiano. 
 
Pensando no futuro, Irena Sendler escreveu os nomes das mais de 2.500 crianças salvas por ela da morte certa, depositando-os dentro de uma jarra, que foi escondida em um terreno, segundo algumas fontes, o que possibilitou que elas tivessem suas origens rastreadas e que também fossem encaminhadas a famílias adotivas após os momentos mais cruéis da grande loucura guerreira daqueles tempos. Se da jarra, ou caixa, de Pandora, saíram todos os males que afligem a humanidade, permanecendo presa ali somente a esperança, os acontecimentos envolvendo Irena Sendler possibilitam uma leitura otimista do mito.
 
Quando o mal atinge um ponto máximo na história, como os males de uma guerra mundial que atinge a todo o mundo, gestos como os da vida de Sendler confirmam uma visão otimista da esperança, que pode servir de alento diante dos males de quaisquer natureza. Falecida no mês de maio, a enfermeira polaca ficou conhecida por algumas alcunhas nobilíssimas, como, por exemplo, “O Anjo do Gueto de Varsóvia” e “A Mãe das Crianças do Holocausto”. Sua morte no mês de maio de 2008, aos 98 anos de idade, configura, ainda, uma singular sincronicidade junguiana que ressalta o seu extraordinário espírito materno.
 
Gismair Martins Teixeira – Doutor em Letras e Linguística; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte.
 

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