Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 12º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Carol Piva

De asas e abismos, a poesia: nos arames farpados de Lisa Alves

| 27.12.15 - 14:29
 
Goiânia - “Quando a tempestade vai embora, eu sopro as nuvens.” E então várias entonações se abrem: experiência, sentimento, linguagem; pulsação; diálogo,  epifanias e desvarios; ritmos, ausências, discordâncias; o desespero pela submissão aos relógios que alimentam a miséria humana e a miragem da não subserviência; exercício de transformação, para transformar; e a consciência da palavra sagrada e maldita, no limite entre a emoção, a fatalidade prosaica do mundo e a premência de dizer, para libertar. 
 
Mas o que diz a poesia, do que ela é feita, como ela se comunica? Ao que de pronto se responde: escrever poesia, convivê-la de elefantes fragilíssimos e com eles se lançar às ruas, de mãos dadas, se afastando dos asfaltos da vida, mas sem prescindir de pensar o papel do poeta, o lugar e a responsabilidade do artista no mundo contemporâneo. 
 
Combater com a palavra, restituir à palavra o seu poder de sonhar e transformar. Concluiria o historiador Howard Zinn: “Um poema pode inspirar um movimento”. E — emendaríamos — revolucionar percursos, esticando horizontes. Escrever poesia, ser poesia.

“Naquele espaço onde as mãos 
afagam o céu.” 
 
Eis a primeira imagem-dentro que se forma com a leitura de Arame Farpado, livro de poemas de Lisa Alves, publicado agora-em-2015. De saída, encontramos em seus versos mais do que poéticos recados de conteúdo político e não apenas engajados em denunciar as coisas do nosso tempo, este nosso “tempo de indiferenças, de alienação, de injustiças” — “tempo de partido, 
de homens partidos”, já diria Drummond... 
 
É que a poeta, para bem além, toma na verdade para si a tarefa de reverberar que um poema não para no tempo. O que equivale a entender que ela exorta a todos ao posicionamento exigido pelo próprio tempo, tão estranhamente o de sempre, tão familiar, mas também tão nosso “tempo de reformas, de mudanças”, tempo em que “é preciso arrancar folgas da realidade”, “navegando a noite, clareando [nossos] olhos sonolentos”. Tempo de reclamar, com ironia ou irrisão, que nos “devolvam os sonhos, nossas árvores de pé, a nossa cultura”.
 
A poeta Lisa Alves (foto: acervo pessoal da artista)
 
Lisa nasceu em 1981 na cidade de Araxá, Minas Gerais, mas é de Brasília há mais de década. Escreve poesia, como lembrou recentemente o escritor Germano Xavier, “para driblar distópicas esquinas”. Vai contornando, assim, os “moldes quebrados por todo o universo” e — vai contornando com versos — os carros misantropos que nos engarrafam e atropelam dias-após. Faz isso na lucidez de se saber “com a temperatura dos trópicos”, “no oceano da [nossa tão sonhada, e necessária!] coletividade.

Tem mãos que “ficam esfoladas”, 
mãos de poeta, de quem persiste... na escrita da paixão, mesmo em meio à asfixia do cotidiano, para romper o silêncio e a perplexidade do silêncio diante da nossa perplexidade — silenciada, contumaz. Oferece, dessa forma, a autora — e tão generosamente oferece ao leitor — as “mãos [que lhe foram] doadas pelo tempo”. Mãos de tantos Eus... Mas, afinal de contas, quem — é este Eu, este Nós que — está fora da cerca, aquém ou além do arame farpado que ela nos incita a ver?

Desde a capa do 
livro, lindamente desenhada pela esposa da poeta, Juliana Botão, “no amor das guerrilhas diárias”, não se restringe o livro à temática LGBT, mas se permite que ele se abra inteiro — e tão inclusivamente — à sensibilidade do não preconceito, da não embalagem, do contraponto do amor em sua “combinação de delicadezas”, “para intransigir o verbo imperativo de polos desiguais” e dizer da vida, em sua radiância e complexidade, bem mais do que dizem os “cultivadores de rótulos, diplomas e imóveis habitações”. Daí tudo ainda que “carecemos ruminar...”. Tentando, infinitamente se for preciso, alcançar o “prato [que] sustém uma iguaria preciosa / com aroma de justiça e sabor de liberdade”, desmantelando os arames farpados projetados até dentro de nós.
 
Contra eles, a poeta nos diz possuir “um arsenal de pedras”. “Nunca atiradas”, aliás. Mas de prontidão lírica. Como vemos, afinal, nos seus seis arames farpados: “Do eu”, “Dos territórios”, “Da dominação”, “Da vindicta”, “Das contradições”, “Da poesia”. Em cada uma dessas partes da obra, “a Poesia pede influência, fluência, ar puro e compaixão”. E é quando ela mais dialoga com a melhor poesia produzida hoje. 
 
Por exemplo: leio e releio o livro de Lisa. Con(sinto), como pressagia Mario Benedetti, que em todos os livros que lemos encontramos palavras nos persistindo. Que se costuram e se emaranham de outras — palavras, obras, imaginaturas, palavras. 
 
E então me lembro da entrevista de Mary Oliver a Krista Tippett no início deste ano, quando a poeta reafirma a poesia como um constante exercício de se preguntar sempre, como o faz no poema “The Summer Day”, o que afinal de contas planejamos fazer com a nossa vida, ou no fim das contas pensamos estarem as coisas todas no lugar? 
 
Ainda: (re)percorro as trilhas de uns tantos questionamentos de Ana Cristina Cesar, a certa altura... em seus (uni)versos marcados pelo tom intimista, de composição mais próxima da prosa, como os de Lisa. Com os jogos irônicos e metalinguísticos sobre o próprio fazer poético, na esteira de um cotidiano insólito e que precisa ser questionado, destituído de suas pasteurizações e zonas luminosas, gentrificadas, espetaculares. O quanto antes.
 
“A Poesia mendiga essência”, entra-alinhava Lisa Alves. “A arte é o amor em obra: uma criatura à espera / de um povo que a fecunde...” 
 
Poesia também existe para convocar, contra(dizer) e transfigurar. Questionar, permitir conhecimento(s), salvaç(ões)... e que a gente veja. Para contrapor — à miopia das repetições “nessa orbe de segunda a segunda” — a esperança da reação, das “cartas para o mundo”, do não silêncio, do amor. 
 
Pois-assim me coloco “a teus pés”: sou uma pessoa melhor depois-de e em-lendo os teus versos, querida poeta. Vida longa à tua poesia!   

*Carol Piva é uma das editoras-fundadoras do jornal literário O Equador das Coisas, tradutora e ficcionista.

Livro: Arame Farpado
 
Gênero: poesia
 
Editora: Coletivo Púcaro e Nyx Poética
 
Ano de publicação: 2015
 
118 páginas
 
Pólen Bold 90 g, 14 x 21 cm
 
ISBN: 978-85-69334-00-2
 
R$25,00
 
lisaallves@gmail.com  |  lisaallves.blogspot.com

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:
Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351