Théo Mariano
Goiânia - Goiás perdeu na última década quase 1 milhão de hectares do Cerrado para o desmatamento. O valor é equivalente a cerca de 50 mil estádios do Maracanã. Em uma proporção maior, a devastação apenas no Estado impactou área equivalente a mais de seis cidades de São Paulo. O levantamento exclusivo do jornal
A Redação foi feito com base nos dados do portal
Cerrado Deforestation Polygon Assessment Tool (Cerrado DPAT), que disponibiliza de forma gratuita indicadores sobre o desmatamento no bioma. O sistema foi desenvolvido pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig-UFG) e utiliza números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A assolação dessas áreas, como explica o professor e pesquisador da UFG, Manuel Ferreira, contribui para o apagamento do ecossistema, além de potencializar o aquecimento global.
(Foto: Arte/A Redação)
O Cerrado, celebrado nacionalmente neste 11 de setembro, é o segundo maior bioma da América do Sul e é considerado a formação savânica mais biodiversa do mundo. Quase um terço das áreas desmatadas deste ecossistema em Goiás, entre 2019 e 2020, está em reservas de proteção legal. Segundo o cálculo da UFG, foram desflorestados nas matas cerratenses goianas 724,556 km², cerca de 72.455 hectares, só durante o ano passado. Deste total, 214,55 km² estavam em zonas de reserva legal. O território completo do Cerrado possui 2 milhões de km² e, só no Brasil, abrange 13 Estados: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo, Distrito Federal e alguns poucos terrenos do Amapá.
“O produtor deveria ser o principal na linha de frente do combate à devastação dos biomas”
(Sérgio Nogueira, pesquisador da UFG)
Pesquisador da UFG e um dos responsáveis pelos dados do Cerrado DPAT, Sérgio Nogueira considera “irracional” que agropecuaristas invistam tempo e dinheiro na devastação de terras. Isto, afirma, porque o desequilíbrio climático consequente do desmatamento prejudica os próprios agricultores e pecuaristas. “O produtor deveria ser o principal na linha de frente do combate à devastação dos biomas”. Ainda assim, retoma, apesar da última década ter registros alarmantes de desmatamento, os números foram menores do que nos anos anteriores. “As atividades migraram do Cerrado para a Amazônia, porque as terras mais férteis do primeiro ecossistema se tornaram escassas ou estão ocupadas", esclarece.
Em âmbito nacional, o Cerrado viu cerca de 8,8 milhões de hectares da sua área total serem transformados em terras para a agropecuária na última década. O valor, se calculado da mesma forma que foi feito com o território goiano, representa mais de 550 mil estádio Serra Dourada ou 57 cidades de São Paulo. "O bioma Cerrado perdeu até hoje cerca de 55% de sua área, isso em uma estimativa conservadora", analisa Manuel Ferreira. O professor adverte que o desmatamento provoca a alteração do ecossistema, o que afeta diretamente a economia com a mudança em diversos pontos do processo de produção. A crise hídrica é uma delas. Conhecido como o berço das águas, o Cerrado é responsável pelas principais nascentes brasileiras, pois está localizado sobre os grandes divisores de águas do país e forma as principais bacias hidrográficas da América do Sul.
O
Museu Virtual da Universidade de Brasília (UnB) detalha, na exposição "Cerrado Patrimônio dos Brasileiros", a importância deste bioma e suas águas: "O Velho Chico [rio São Francisco] nasce na Serra da Canastra; e o rio Araguaia, na Serra de Caiapó, sendo este o principal afluente do rio Tocantins, que nasce na Serra de Pirineus. O manancial do Parnaíba está na Serra da Tabatinga. Também na zona de transição entre o Cerrado e a Amazônia nascem importantes contribuintes das bacias dos rios Tapajós e Xingu, formadores da bacia Amazônica. Além disso, destaca-se um fenômeno curioso das “águas emendadas”, uma área protegida do Distrito Federal e onde se situam nascentes que drenam para duas importantes bacias hidrográficas brasileiras: ao norte a bacia do Tocantins e, ao sul, a bacia do Paraná-Prata."
"O que vemos são cidades com o agronegócio forte,
mas o restante da economia subdesenvolvida... pobre"
(Manuel Ferreira, pesquisador da UFG)
O reflexo da devastação é percebido no momento em que os termômetros começam a marcar temperaturas mais altas, se encarece o custo da energia elétrica e, consequentemente, o valor de produtos produzidos com o uso da eletricidade. No Brasil, o governo federal anunciou nova bandeira tarifária, que terá taxa extra de R$ 14,20 pelo consumo de 100 kWh. O modelo entrou em vigor a partir do dia 1º de setembro e segue, a princípio, até abril de 2022. Anteriormente, o valor cobrado pela mesma quantidade de eletricidade utilizada era de R$ 9,49. "O retorno financeiro [da devastação no Cerrado] está concentrado em poucos indivíduos, é destinado para uma parcela muito pequena da população. O uso das grandes terras para exportação de alimentos não gera renda para se distribuir no município e acabamos na seguinte situação: vemos cidades com o agronegócio forte, mas o restante da economia subdesenvolvida... pobre", reflete Ferreira.
Em entrevista exclusiva ao jornal A Redação, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que é atual secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, analisa que é preciso investimento em tecnologias para aliar a produção do agronegócio à preservação do meio ambiente. O administrador, dono de vasta experiência na área econômica como ex-presidente de bancos internacionais e do Banco Central do Brasil, pondera ser totalmente possível manter os lucros com avanços no rumo da sustentabilidade. "Hoje, temos o risco hídrico, que é a falta de chuva e, consequentemente, a falta de energia. Isto é um problema gravíssimo para todos e para o Brasil. Por isso, tantos países estrangeiros buscam investir em projetos que revertam esse cenário", comenta o ex-ministro.
"O governo federal precisa facilitar o acesso do agricultor a tecnologias e financiamentos, para que se plante mais em território menores"
(Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e atual secretário da Fazenda do Estado de São Paulo)
Meirelles alerta justamente para o ressecamento e o aumento das temperaturas médias. "Além da preservação ao meio ambiente, o governo federal também precisa facilitar o acesso do agricultor a tecnologias e financiamentos, para que se plante mais em territórios menores", acrescenta. O ex-ministro foi taxativo ao avaliar que é necessário se ter um controle sobre as secas, "que a cada ano ficam piores". "A falta de água prejudica também a agricultura e a pecuária. Precisamos, primeiro, proteger o meio ambiente e, em segundo, promover a ampliação da produção, com uso de tecnologias para se produzir mais, além de criar facilidades para a entrega dos itens produzidos. Não podemos esquecer ainda das chuvas, pois não podemos ficar apenas dependentes da irrigação artificial."
Queimadas atingem o Cerrado. (Foto: Luiz Fernandes via WWF Brasil)
"Existe um discurso de que o incêndio faz parte do Cerrado e não causa problemas no bioma, mas o que vemos nos últimos anos é o aumento da intensidade dessas queimadas"
(Sérgio Nogueira, pesquisador do Lapig-UFG)
Muito além dos rios ressecados, que contribuem para o encarecimento da energia elétrica, e a alteração do bioma de formas quase impossíveis de se recuperar, o desmatamento favorece ainda a incidência de queimadas. Como exemplifica o pesquisador Sérgio Nogueira, os incêndios, de fato, são habituais no Cerrado, mas quando ocorrem "naturalmente". "Geralmente, as queimadas são observadas nesse tipo de bioma após as ações de desmatamento, muitas vezes para limpar os territórios devastados. Mas o fogo por diversas vezes se alastra e acaba por atingir áreas que vão além das propriedades privadas, como até mesmo reservas legais e zonas de proteção permanente", pontua.
Segundo o boletim
InfoQueimada do Inpe, o Cerrado foi o bioma brasileiro atingido por maior parte das queimadas registradas em julho de 2021. De acordo com o levantamento, que é divulgado mensalmente, o território cerratense foi alvo de 59,7% dos focos de incêndio notificados no país, com área de 16.048 km² atingida pelas labaredas. Este ecossistema, inclusive, está localizado na área com risco "crítico" de queimadas. "Fora dos parques [de preservação], toda a extensão do bioma está suscetível a mais queimadas e desmatamentos, o que tem acontecido de forma frequente. Esse fogo atinge ainda outras pequenas propriedades e cria conflitos entre os moradores locais", observa Manuel Ferreira. Ainda conforme os números, Goiás registrou em julho deste ano 56 focos de incêndio em áreas de Cerrado a mais que o mesmo período do ano passado.
Em voz estridente, o lendário da música brasileira Chico César faz bradar a dor de se ver o campo devastado. Em "Reis do Agronegócio", o paraibano canta:
"Eu vejo o campo de vocês ficar infértil/ Num tempo um tanto longe ainda, mas não muito / E eu vejo a terra de vocês restar estéril / Num tempo cada vez mais perto, e lhes pergunto / O que será que os seus filhos acharão / De vocês diante de um legado tão nefasto? / Vocês que fazem das fazendas, hoje / Um grande deserto verde só de soja, de cana ou de pasto? / Pelos milhares que ontem foram e amanhã serão / Mortos pelo grão-negócio de vocês / Pelos milhares dessas vítimas de câncer / De fome e sede, e fogo e bala, e de AVCs."