Eu já estava ansiosa, assistindo a leitura do voto da ministra Cármen Lúcia, durante o julgamento da trama golpista, no Supremo Tribunal Federal, na última quinta-feira, quando a ministra solta esta frase e arranca risadas de todos os presentes: "Nós mulheres ficamos 2 mil anos caladas e nós também queremos ter o direito de falar."
A frase foi dita em resposta ao ministro Flávio Dino, em tom de brincadeira, assim que ele lhe pediu um aparte e ela o concedeu. Cármen Lúcia é considerada uma frasista de alta grandeza. A habilidade com as palavras sempre foi uma de suas maiores virtudes. E eu, com toda a curiosidade que compete a uma jornalista, estava atenta, com caderneta em mãos, ávida por sua verve.
Esta, em particular, veio aos 17 minutos do voto da ministra, que durou pouco menos de duas horas. E, com aquela frase, a ministra se referia, provavelmente, à sociedade patriarcal, o sistema de opressão e dominação masculina.
E para não perder a deixa, já emendo outra frase da mesma autora, dita no dia da mulher, no ano passado, mas que se encaixa aqui, perfeitamente: “Dizem que nós fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas”.
Ainda bem que Cármen Lúcia se fez ouvir. Neste julgamento, histórico e inédito - que levou para o banco dos réus um ex-presidente da República e 7 militares de alta patente por tentativa de golpe de estado - a ministra falou com muita tranquilidade, didatismo e firmeza. “O que há de inédito nessa ação penal, é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase o encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro".
E mais uma: "se houve dor, também houve muita esperança”, se referindo aos 40 anos da redemocratização. Aqui há muito da ministra, da sua personalidade decidida e ao mesmo tempo leve.
Cármen Lúcia é a segunda mulher a integrar o Supremo Tribunal Federal, depois de Ellen Gracie e antes de Rosa Weber. E como estas duas já se aposentaram, hoje, ela é a única representante do sexo feminino, na Suprema Corte. Imagine que, em 134 anos de história do Supremo, houve 171 ministros e apenas 3 ministras, sendo que nenhuma negra.
Pensar que, depois de 4 anos de mandato de Jair Bolsonaro, em que as mulheres foram tão atacadas pelo ex-presidente, foi justamente através do voto da ministra, que o julgamento atingiu a maioria de votos para a condenação de Bolsonaro e demais réus.
“Não existe imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo, que é insidioso, destilando seu veneno contra liberdades e direitos humanos.” E minutos depois: "É por isso, que as legislações, em todo o mundo, passaram a cuidar dos sistemas constitucionais e penais do estado democrático de direito”.
A ministra está no Supremo há 19 anos e ainda faltam 4 anos para sua aposentadoria. Cármen Lúcia Antunes Rocha é professora, jurista, é presidente do Tribunal Superior Eleitoral e foi presidente do STF, além de ter escrito 8 livros. Que privilégio para a democracia brasileira poder contar com esta mineira, de Montes Claros, 71 anos, que aos 15 anos, ainda adolescente, comunicou aos pais: não vou me casar, porque vou me dedicar à minha profissão.
De uma família de 7 irmãos, que lhe deram nada menos que 18 sobrinhos, Carmen Lúcia mantém residência fixa em um apartamento funcional, em Brasília, mas a cada 20 dias vai à Belo Horizonte, onde tem uma cobertura. Gosta de se exercitar em casa e sabe cultivar amizades, como a cantora Alcione.
É conhecido um episódio, quando em cantoria com amigos, Alcione provocou a ministra e pediu que ela cantasse mais alto. Pois ela não só cantou, como mostrou que é afinada, abriu os braços e ensaiou uns passos, causando surpresa nos demais, que só conheciam o lado mais contido da ministra.
O meu preferido foi em entrevista ao já falecido publicitário, Washington Olivetto, no ano passado, quando ela lhe contou que quando um juiz é promovido, ele comemora, compra uma garrafa de vinho e vai, feliz da vida, contar para a família. Já uma “maegistrada”, como a ministra se refere carinhosamente às juízas com filhos, quando recebe uma promoção costuma dizer que vai ter que conversar com o marido e os filhos. Voltamos ao patriarcado do começo do texto.
Me despeço com mais uma citação da ministra frasista para nos lembrar da importância do momento histórico que vivemos, nesta semana: “O Brasil só vale a pena, porque nós estamos conseguindo ainda manter o Estado Democrático de Direito, com as nossas compreensões diferentes, estamos resguardando o Direito, que o Brasil impõe, que nós como julgadores façamos valer”. E assim a ministra terminou a leitura de seu voto, no STF.