Envelhecer é um pouco compreender que aquilo que sempre nos pareceu serem nossos maiores defeitos são, na verdade, virtudes. Cada vez mais concluo isso, por exemplo, em relação à minha baixa autoestima e à minha culpa generalizada. Noventa e nove por cento dos problemas do mundo estariam resolvidos com um pouco menos de autoestima distribuída por aí e se as pessoas se livrassem do vício de terceirizar responsabilidades. Duvidar é melhor que ter certezas. Assumir responsabilidades é muito mais saudável do que culpar.
Nesse sentido, nada me produz tanto mal-estar hoje quanto o desprezo da elite intelectual brasileira pela música sertaneja. É claro que, como não pega bem ter preconceitos, esse preconceito se dilui em subterfúgios e manobras retóricas. A mais básica delas é a de se remeter à suposta separação entre música caipira - raiz e verdadeira - e música sertaneja - degradada e cafona. A primeira corresponderia ao universo idílico do campo não contaminado pela modernidade capitalista, ao mundo puro do caipira uspiano de Antonio Candido, a segunda, ao Brasil do latifúndio, da expropriação, da violência e da degradação ambiental - a fronteira uspiana de José de Souza Martins.
Comecemos então a defletir as flechas vindas da Vila Madalena e do Leblon: Candido e Martins são dois grandes intelectuais e suas contribuições são fundamentais para entendermos o Brasil. Mas são também muito mais sutis e complexos em seu pensamento do que a apropriação e interpretação que nós, esquerda de rodas de samba, fazemos deles.
Entre a visão que se tem do Brasil sertanejo no Brasil dos bares da moda onde se ouve MPB - seja na Gávea, em Pinheiros ou no Setor Sul de Goiânia - e o Brasil real do sertanejo - seja na fronteira consolidada de Rio Verde ou nas frentes pioneiras da Amazônia ou do Matopiba -, há uma distância que não se mede em quilômetros. Ela pode ser mais propriamente dimensionada pelo tamanho dos estereótipos e do desconhecimento que a dita elite cultural tem de lugares não tão distantes, como Barretos, ou realmente distantes, como São Desidério, na Bahia, município campeão do desmatamento em 2023, ou Colniza, no norte do Mato Grosso, um dos maiores focos da extração ilegal de madeira no Brasil.
Por isso, é um sopro de ar fresco a abertura, nesta terça, dia 13 de maio, no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), da exposição Não Vou Negar: Artes Visuais, Território e Música Sertaneja, com curadoria de Paulo Duarte-Feitoza, pesquisador e professor da Faculdade de Artes Visuais da UFG. Ela reúne trabalhos de 30 artistas, em sua maioria radicados em Goiás, entre nomes consagrados e emergentes, vivos e falecidos, tendo como eixo o diálogo com o universo da música sertaneja. Entre os destaques, há obras de gente reconhecida, como Siron Franco e Nazareno Confaloni, e nomes de novas gerações, como Benedito Ferreira, Emilliano Freitas, Cássia Nunes e Verônica Santana.
O trabalho costurado por Paulo tem várias virtudes. Em primeiro lugar, simplesmente a de trazer a música sertaneja e seu universo, de forma séria e respeitosa, para dentro da academia e do mundo artístico-intelectual. Segundo, fazê-lo de forma instigante e cuidadosa. O tom não é de celebração acrítica, nem tampouco de ironia pós-moderna. Como convém ao nos aproximarmos de um universo que não é exatamente o nosso, a postura é a de um afeto interrogativo e de abertura interessada.
De forma sintomática, por outro lado, isso só parece possível porque o mundo sertanejo não é estranho a Paulo - nem aos artistas que compõem a mostra. Paulo é um goiano que viveu grande parte de sua vida na Espanha, e talvez justamente isso tenha lhe permitido conservar esse afeto e interesse pelo sertanejo que também é parte de sua herança e história.
Não parece ingênuo, nem afetado, o olhar logrado pela exposição, a começar pelo título, inteligente e irônico, extraído do verso de abertura do hit “É o Amor”, de Zezé de Camargo e Luciano: “Não vou negar” - que, não deixemos escapar, continua para dizer: “...que sou louco por você”.
Com isso, o que se vê entre os trabalhos, vai da nostalgia à tensão. A primeira invocada por fotos como as de Samuel Costa, feitas durante a festa do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO), ou pelas pinturas de Rossana Jardim, que retratam as quase extintas frases de parachoques de caminhão. A tensão surge, por exemplo, nas pinturas expressivas de Verônica Santana, retratando duplas sertanejas de travestis, na coluna greco-romana erguida no centro do espaço de exposição pelo Barranco Ateliê, coletivo de Anápolis, remetendo à estética kitsch das lojas da Havan e da mansão de Gusttavo Lima, ou ainda nas faixas de Benedito Ferreira, com versos de canções de Marília Mendonça e Maraísa, apontando para o protagonismo feminino nesse universo e para a revolução trazida pelo feminejo.
Evidentemente, cabe a quem visita a exposição interpretar seus significados. As travestis de Verônica Santana podem ser lidas como ironia ácida ou como janela para a complexidade de um mundo que é, sem dúvida, profundamente machista, mas que também tem uma sexualidade mais complexa e contraditória do que nossas idealizações sugerem. De forma análoga, as fotoperformances de Cássia Nunes seriam críticas à força esmagadora da modernidade sobre a tradição, celebração da resistência ou uma possibilidade de síntese?
A coluna greco-romana no centro do espaço parece entretanto condensar de forma definitiva a proposta humilde e ousada de Paulo Duarte-Feitoza e, para ficarmos nas metáforas medievais e clássicas, baixa a ponte levadiça sobre o fosso e traz o Cavalo de Tróia, ou elefante, para dentro da sala.
Já não é mais possível ao Brasil urbano, especialmente aquele encastelado no sudeste, manter suas costas voltadas para o interior bárbaro, enquanto tenta enxergar-se no além-mar. O Brasil é João Gilberto, mas é também Leonardo. Não à toa, nas periferias e subúrbios de São Paulo e do Rio, ouve-se mais música sertaneja que qualquer outro ritmo. Paradoxalmente, enquanto nós ilustrados continuarmos enxergando a música sertaneja como expressão do atraso, ao mesmo tempo em que hipocritamente consumimos os produtos do agro, o lado efetivamente bárbaro de nossas fronteiras econômicas se aprofunda e se autojustifica. Ou o Brasil de João Gilberto desce do pedestal que construiu para si e deixa de negar o Brasil de Leonardo como seu irmão legítimo ou não haverá mais Brasil
A exposição Não Vou Negar: Artes Visuais, Território e Música Sertaneja traz, entretanto, esperança de que, pela própria força das circunstâncias, a realidade se imponha e essas pontes comecem a ser ampliadas, de forma humilde, interessada e afetuosa - o que não significa ser ingênuo ou apologético.