Todavia, o filme nos conquista justamente porque seu olhar sobre esses personagens é terno e empático. Isolados em um mundo sem mulheres - a única personagem feminina abandona os homens e o filme praticamente na primeira cena - Totó, Durval, Jerominho, Domingos, Antônio e o Ermitão são dignos de pena e compaixão.
É preciso insistir, entretanto, que esse sentido é um entre outros possíveis, e que o maior mérito do filme reside precisamente em deixar essa construção a cargo do espectador.
Cartaz de Iracema, uma Transa Amazônica (Fonte: Wikimedia), filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna.
Há, por fim, um outro aspecto menos discutido do filme que o coloca em um diálogo inteligente com duas tradições importantes do cinema: o faroeste americano e os filmes brasileiros sobre o sertão e a fronteira.
É interessante, para pensar sobre isso, resgatarmos o sentido e a importância da ideia de fronteira na própria cultura americana.
A significação do termo "fronteira", como espaço de transformação econômica e social no território, remete às ideias do historiador americano
Frederick Jackson Turner. Apesar de seu lado ideológico, que glorificava a figura do pioneiro norte-americano e legitimava o genocídio indígena, Turner teve o mérito de, pela primeira vez, compreender a fronteira como um lugar de contradições onde, por meio do choque entre culturas, funda-se uma nova sociedade. Nesse sentido, para o bem e para o mal, ele entendia que a cultura americana não era o simples transplante do modo de ser britânico ou europeu para a América do Norte, mas sim o resultado da fusão por meio do choque entre as culturas europeias e indígenas.
Robert Pirsig, autor de
O Zen e a Arte de Manutenção das Motocicletas, de quem falei recentemente em mais de um texto neste espaço (
aqui e
aqui), em seu menos conhecido
Lila, também defende ideia semelhante, reconhecendo o estoicismo e o pragmatismo do cowboy americano, entre outras qualidades, como traços indígenas, e não como heranças europeias.
Ora, o faroeste é o gênero por excelência do cinema americano porque a fronteira é tema determinante e essencial da identidade estadunidense. Nesse sentido, é interessante pensar que esse é o único gênero narrativo batizado em relação a uma referência geográfica: o far west ou western.
No filme de Érico Rassi, a referência é explícita já no título do filme, que assume sua filiação ao gênero. De outro lado, cabe lembrar que o faroeste foi também uma referência de Glauber Rocha no filme que o consagrou:
Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ele e sua sequência,
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, são evidentemente dois westerns, tanto no sentido formal e de linguagem, como por se tratarem de filmes que tematizam a fronteira, esse território onde começam a chegar as forças da modernização e onde se confrontam projetos e visões de mundo antagônicas.
Assim como para Frederick Turner a fronteira foi o lugar da gênese da cultura americana, para o sociólogo
José de Souza Martins, um de nossos grandes estudiosos do assunto: “É na fronteira que nasce o brasileiro”, pois ela é “fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano.”
Para além dos faroestes de Glauber Rocha, alguns dos melhores filmes produzidos pelo cinema brasileiro são também filmes de fronteira. Entre outros, vale lembrar especialmente de
Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky e Orlando Senna,
Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues,
Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e
Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Em comum, todos têm como cenários regiões de fronteira econômica - a Amazônia ou o sertão nordestino -, mas sobretudo tematizam esse embate entre culturas de que surge o Brasil moderno.
Goiás produziu um dos grandes filmes de fronteira do cinema brasileiro, uma de suas pérolas desconhecidas:
O Diabo Mora no Sangue, dirigido por Cecil Thiré a convite do roteirista, produtor e protagonista, João Bennio. Nele, um sertanejo é confrontado com seus princípios e emoções diante da chegada de turistas urbanos com seus hábitos diferentes às praias do Rio Araguaia.
Ora, Goiás, como estado e região cultural, é um dos grandes símbolos da fronteira brasileira e tem plasmado em sua identidade, ainda que a fronteira econômica há muito tenha avançado, esse caráter híbrido típico do choque entre tradição e modernidade. Sertão remoto e visto como decadente até a Revolução de 1930, o estado se torna, pelo visionarismo do líder revolucionário e interventor
Pedro Ludovico Teixeira, uma ponta de lança e referência para o novo Brasil prometido por Getúlio Vargas. Goiânia foi erguida do nada, na década de 1930, como referência para o país moderno, urbano e próspero que se desejava. E é também de Goiás que parte a Marcha para Oeste com o objetivo de “conquistar” a Amazônia selvagem e seus moradores indígenas para esse projeto de progresso.
Nada mais lógico, portanto, que o cinema de um diretor de Goiás se insira nessa tradição e discuta temas da fronteira: a ausência da lei e do Estado, a justiça pelas próprias mãos, a valentia como afirmação do masculino, o papel secundário ou virtual ausência das mulheres, a dureza num confronto idealizado entre a brutalidade dos homens e uma natureza ainda mais violenta.
Como se vê, é um filme que dialoga com questões antigas e contemporâneas, que se ancora em múltiplas referências dos cinemas americano e brasileiro, sem deixar de mencionar a competência formal com que faz tudo isso, numa fotografia (do brasiliense André Carvalheira) que reforça a sensação de aridez, isolamento e distância, e numa trilha sonora que sublinha os elementos caros à narrativa sem arroubos ou exageros.
Da mesma maneira que vem surpreendendo a crítica, espero que Oeste Outra Vez caia no agrado do público e encontre o lugar que merece na galeria do cinema brasileiro.
Oeste Outra Vez
Ficção, 98 minutos
Direção e Roteiro: Érico Rassi
Elenco: Ângelo Antônio, Babu Santana, Rodger Rogério, Adanilo Reis, Daniel Porpino. Tuanny Araújo
Data de estreia: 06/03 (Goiás), 27/03 (partes menos importantes do Brasil, como Rio e São Paulo).