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Pedro Novaes
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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Entre o Niilismo e o Polianismo

| 18.02.25 - 07:33 Entre o Niilismo e o Polianismo Os policiais Marty Hart (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey), na primeira temporada de True Detective (Foto: HBO/Divulgação)
 
Na cena final da primeira temporada da série True Detective, produzida pela HBO, o policial Marty, representado por Woody Harrelson, busca seu parceiro Rust, encarnado por Matthew McConaughey, que se recupera no hospital. Os dois enfrentaram - e quase morreram no processo - um bizarro assassino responsável por crimes em série na Lousianna envolvendo satanismo, pedofilia, magia negra e muita violência. É uma série pesada, que constrói uma atmosfera sinistra e sufocante onde todos os personagens têm um lado escuro que acaba por vir à tona. 
 
Rust Cohle em especial é uma figura em que se entrelaçam, de maneira dramaturgicamente genial, uma metade apolínea, metódica e disciplinada, e as sombras dionisíacas de um policial que se viciara em todo tipo de substância depois de anos trabalhando como infiltrado em uma quadrilha. Sua vivência desse mundo brutal fez dele um sujeito irascível, cínico e misantrópico.
 
Após o confronto com o mal ainda mais profundo encarnado no demoníaco assassino em série, numa cadeira de rodas do lado de fora do hospital, Cohle está muito abalado. Marty tenta demovê-lo da tristeza e lembra de uma história que o próprio Rust lhe contara sobre o tempo em que morava no Alaska e gostava de contemplar o céu coalhado de estrelas. É noite, e Marty aponta para o céu da Louisiana e tenta animar o amigo sem ao mesmo tempo parecer ingênuo. Ele sugere que há muitas estrelas no céu, apesar da escuridão ter mais espaço. E então, numa refinada inversão final de papéis, Cohle responde: “Você está olhando do jeito errado, Marty. No começo, só havia a escuridão. A luz está vencendo”.
 
Gosto de pensar nessa cena sempre que vejo ondas de autoflagelação disparadas pelas agruras dos tempos que vivemos. Ontem, foi por algum fascista de plantão. Hoje, é Donald Trump, a guerra em Gaza ou na Ucrânia, a última catástrofe climática, mais uma chacina no Rio ou em São Paulo. 
 
De fato, há uma séria crise colocada, que não é brasileira, argentina ou americana, nem palestina, israelense ou tampouco russa ou ucraniana. Essa é uma crise global, que é também política e ambiental, mas sobretudo uma crise cultural. 
 
A modernidade, esse edifício construído em torno da ciência, da tecnologia e de um tipo de política a elas associado, trouxe imensas conquistas sociais e econômicas, mas também revelou faces ainda desconhecidas do mal nas armas de destruição em massa e num nível irresponsável de manipulação da natureza e interferência na biosfera. Nossa crise é a da própria modernidade sucumbindo sob o peso de seus efeitos colaterais. Incapaz de justificar aquilo que já não cabe dentro de suas próprias categorias explicativas - progresso, desenvolvimento, sociedade e natureza, objetividade, etc. -, o imenso transatlântico aderna perigosamente sob o peso dos cadáveres ocultos no porão. 
 
Sem conseguir dar explicações sólidas, a modernidade já não garante mais sentido, e nós hesitamos, sem saber o que fazer, entre o ceticismo absoluto e o polianismo cego. Em comum, essas duas visões que nos restam têm o fato de serem idealizações sem qualquer base no real. 
 
O ceticismo vem em duas versões: a reacionária e a niilista. Na primeira, já houve um passado perfeito que precisamos resgatar. É o terreno dos ultraconservadores e da extrema-direita. Na segunda, o ser humano é apenas um experimento darwiniano fracassado, uma fera absolutamente egoísta sem pendor para a vida em comunidade. Todo esforço é inútil. 
 
O polianismo, de certa forma, dobra a aposta moderna e idealiza o futuro. É o território da esquerda. Ainda haverá uma sociedade perfeita, de respeito entre os humanos e para com a natureza. Suas variantes práticas são várias, passando por estados totalitários que poderiam colocar em prática esse projeto de igualdade e felicidade, pelo retorno à natureza, espelhando as sociedades indígenas, e por misturas várias de misticismo e vida hippie.
 
De um lado e outro, ideais. De um lado e outro, sofrimento psíquico cada vez maior porque nenhuma das contas fecha. De um lado e outro, demonização do outro e tribalismo, último recurso para mantermos algum sentido sem abrirmos mão de sermos modernos.
 
Mas a maravilhosa cena de True Detective aponta para a possibilidade de uma terceira via. É possível  - e muito mais maduro - aceitar que a escuridão é grande e poderosa, e que nossas forças são pequenas diante do mal, mas acreditar que a luz vem crescendo. O que embasa a própria ideia de democracia é exatamente essa visão: sem anteparos, o risco de guerras genocidas e de todo tipo de opressão e autoritarismo é sempre muito grande. A democracia estabelece um equilíbrio delicado de forças em que a luz pode passar e se manter. Vale muito defendê-la, mesmo quando a escuridão parece crescer e o sentido nos escapar.

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