O clima apocalíptico em Brasília e Goiânia no último domingo deveria servir de alerta para despertarmos do estado de negação e começarmos a encarar com seriedade a necessidade de planos de adaptação às mudanças climáticas.
Como mostram os dados meteorológicos, os ventos predominantes de direção Sudeste-Noroeste arrastaram para o Planalto Central um grande volume de poluentes oriundos dos incêndios e queimadas recorde no estado de São Paulo. O INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, registrou
3.175 focos de incêndio naquele estado nos 25 primeiros dias de agosto, o maior índice para o mês desde 1988.
Além da situação extrema em São Paulo, noticia a
Rádio CBN, entre janeiro e agosto deste ano, foram registrados, em Goiás, 1.493 incêndios florestais, número 22% maior que o do mesmo período do ano passado.
No domingo, o
Aeroporto de Goiânia operava com limitações em função da baixa visibilidade e 26 voos tiveram que ser cancelados.
O
G1 noticia que, para 16 estados, incluindo Goiás, e o Distrito Federal, essa já é a seca mais severa em 44 anos, segundo o
Cemaden, Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais.
Não é segredo para ninguém que a alta carga de poluentes se soma à baixa umidade, nesta época do ano, para tornar crítica a qualidade do ar, com risco especialmente para pessoas mais vulneráveis a problemas respiratórios, como crianças e idosos.
Os poluentes gerados pela queima de biomassa, sobretudo o chamado material particulado fino - aquele com partículas de diâmetro aerodinâmico igual ou inferior a 2,5 micrômetros -, têm associação direta
comprovada com casos de asma, bronquite, doenças pulmonares e cardiovasculares e mortalidade precoce.
Nesse sentido, embora conectemos mais as mudanças climáticas, de forma intuitiva, ao calor e a precipitações extremas, para os que vivem no Cerrado, o principal motivo de preocupação, apontam os estudos, deve ser a estação seca.
Claro que planos de adaptação para metrópoles como Brasília e Goiânia precisam incluir medidas relacionadas ao excesso de água, mas nossos maiores problemas relacionados às mudanças climáticas tendem a ser os impactos na qualidade do ar durante a estiagem, como os que experimentamos neste exato momento. A possibilidade de escassez de água pelo prolongamento e intensificação do período seco vem logo em seguida - sem esquecer que se associam e colaboram para o quadro o aumento do número de incêndios e queimadas e a possibilidade de ondas de calor extremo.
Uma
pesquisa coordenada pelo pesquisador Gabriel Hoffman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por exemplo, mostra que o Cerrado está ficando mais quente e mais seco. Em seu estudo, publicado na revista Global Change Biology, os autores apontam para um aumento das temperaturas médias máximas no Cerrado da ordem de 4°C entre 1961 e 2019, e afirmam que "se essa tendência persistir, a temperatura se tornará 6°C mais alta em 2050 do que era em 1961".
Um passo relevante para que nossas cidades se adaptem às mudanças climáticas foi dado através da
Lei no 14.904, aprovada pelo Congresso a partir de projeto de autoria da deputada Tabata Amaral e sancionada em junho pelo presidente Lula. Essa lei estabelece as diretrizes para que estados e municípios elaborem, de maneira articulada, seus planos de adaptação às mudanças climáticas.
Para nossas cidades do Cerrado, um plano assim, tendo em vista os impactos apontados, deve prever, entre outras medidas, a revisão e adequação dos planos municipais de saneamento, de forma a incorporar a perspectiva de maior variabilidade do regime hídrico e o risco de escassez; medidas mais rígidas para o controle das queimadas; o fortalecimento dos órgãos de gestão ambiental e de recursos hídricos, a previsão de estrutura adequada de saúde, de forma a lidar com a sobrecarga do SUS durante a estiagem, e a criação de sistemas adequados de monitoramento e alerta sobre qualidade do ar, incluindo medidas de restrição a atividades a partir de determinados níveis de poluição.
Não devemos, além disso, esquecer que os impactos dessas mudanças não atingem igualmente todas as pessoas. Eles castigam de forma desproporcional sobretudo os grupos sociais mais vulneráveis. Crianças e idosos, como dito, são muito mais susceptíveis aos problemas respiratórios gerados pela poluição. Os que trabalham ao ar livre também sentirão muito mais os efeitos do calor, da baixa umidade e do ar insalubre. Famílias mais pobres vivem em casas menos eficientes em termos térmicos e menos vedadas à poluição - e seu acesso aos serviços de saúde é também muito mais limitado e precário. As mudanças climáticas se somam à nossa perversa desigualdade social e colaboram para ampliá-la.
É preocupante, nesse sentido, que, para as eleições deste ano em Goiânia, apenas os planos de governo apresentados por Adriana Accorsi e Sandro Mabel abordem a questão das mudanças climáticas. Vanderlan Cardoso, Fred Rodrigues, Rogério Cruz e Pantaleão sequer mencionam o assunto (até onde pude pesquisar, Mateus Ribeiro ainda não divulgou seu plano). Espera-se que o tema surja na propaganda eleitoral e nos debates.
O mundo não vai acabar, mas vai mudar bastante. Haverá escolhas difíceis. Para nós, no Cerrado, esses dias são uma amostra do que teremos que enfrentar. Quanto antes nos prepararmos, melhor.