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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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A força da injustiça

| 26.03.24 - 10:06 A força da injustiça Milo Machado Graner no papel de Daniel Maleski em Anatomia de uma Queda (Divulgação)

Poucas ideias mexem conosco tanto quanto a de justiça. Felipe, meu filho, na semana passada, ficou arrasado. Depois de se esforçar por vários dias fazendo um trabalho em grupo para a escola, o colega de classe responsável por entregá-lo na data marcada não apenas não levou o documento, como o perdeu. Felipe se sentiu triplamente injustiçado: pelo esforço desperdiçado, pela nota ruim que terá e pelo descuido do amigo, que considerou verdadeira traição. Como se diz a uma criança de 11 anos que o mundo nem sempre é justo?
 
E o que é, no fundo, essa grande inquietação política do Brasil - e do mundo - se não um clamor por justiça? Aqui, o caldo entornou em 2013. "Não são só 20 centavos", dizia o slogan bradado pelos manifestantes de São Paulo, em junho de 2013, protestando contra o aumento das tarifas de ônibus, mas também, logo entendemos, contra a precariedade do transporte coletivo, o mau atendimento na saúde, a qualidade ruim do ensino nas escolas, a disfuncionalidade da máquina pública, o alto custo de vida, a desigualdade social, a corrupção - contra, enfim, um Estado que cobra demais e entrega de menos.
 
As ruas não voltaram a se encher desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, mas as questões colocadas - e que seguem, mais que nunca, dividindo o país -, no fundo, têm todas a ver com a justiça ou a falta dela. 
 
Afinal, a grande promessa da democracia não é outra, senão essa: a de um sistema político que nos entregue uma sociedade mais justa, onde todos possam ter uma vida digna, desde que cumpram as regras do jogo, que incluem pagar impostos, renunciar à violência para resolver disputas pessoais e tolerar diferenças.
 
Quando uma investigação como a da Lava Jato, a despeito de todos os seus vícios, ou a do assassinato da vereadora Mariele Franco, revelam o nível de corrupção e de associação entre o crime organizado e a política, é impossível não sermos afetados de maneira dolorosa em nosso senso de justiça. 
 
A ideia de justiça ocupa um lugar central em nossa própria estrutura existencial. Quando passamos a duvidar de sua possibilidade, luzes vermelhas e alarmes de todo o tipo disparam em nosso cérebro. Contemplar a ideia de que talvez não haja garantia de justiça é um desafio nada trivial, fonte de dor e angústia. Essa dificuldade explica, em grande medida, o retorno dos populismos e o magnetismo das soluções autoritárias em tempos de estresse democrático.
 
Não à toa, é tão profícua a produção de filmes de tribunal. 
 
É impossível, nesse sentido, separar nossos afetos relacionados à ideia de justiça da imaginação melodramática. O melodrama é um gênero narrativo que ganha força por volta do final do século 17, início do século 18, e que ajuda a dar conta das profundas mudanças que o mundo vivia então, quando grandes transformações na forma de produzir, com o surgimento da indústria e com a urbanização, trouxeram o fim da Idade Média e dos absolutismos. O Iluminismo apresentava a razão como forma superior de nos relacionarmos com o mundo e questionava a autoridade religiosa. Sem monarcas e sem Deus, como definir critérios de justiça e como dar sentido à realidade, especialmente em sociedades onde as relações seguiam profundamente desiguais?
 
Como explica Ismail Xavier, um dos grandes nomes da teoria do cinema no Brasil, o melodrama "é mais que um gênero dramático (...). É a forma canônica de um tipo de imaginação que tem manifestações mais elevadas na literatura". Isto é, o melodrama não é apenas uma forma de contar histórias, mas uma lente pela qual todos nós, com frequência, interpretamos a realidade. É uma maneira de ordenar o mundo, separando bem e mal, vítimas e algozes, e sobretudo reafirmando certa fé no dogma de que a justiça tarda, mas não falha.
 
É exatamente essa a mensagem da grande maioria dos filmes de tribunal. Não por acaso, neles, quase sempre, o acusado ou seu advogado de defesa é o protagonista. Pense em quantos filmes de tribunal você já viu, cuja trama diz respeito à reparação de uma grande injustiça? Há, quase sempre, um personagem acusado erroneamente ou de forma proposital.
 
No clássico de 1962, O Sol é para Todos, baseado no romance homônimo de Harper Lee, Gregory Peck é um advogado progressista branco numa cidade racista do sul americano, que defende, colocando em risco sua reputação, um lavrador negro acusado injustamente de estuprar uma garota branca. Em Os 7 de Chicago, roteirizado e dirigido por Aaron Sorkin e baseado em fatos reais, sete manifestantes enfrentam o poder do FBI e do Estado americano ao serem injustamente indiciados criminalmente por protestos contra a Guerra do Vietnã.
 
Quando a acusação ganha o proscênio, como em Questão de Honra ou Erin Brockovich, ela assume inevitavelmente o lugar de vítima ou o lado oprimido.
 
No primeiro caso, Tom Cruise e Demi Moore tentam condenar o ameaçador oficial dos Fuzileiros Navais, interpretado por Jack Nicholson, cujos métodos cruéis de treinamento levaram à morte de um recruta. No segundo, baseado em uma história real, Julia Roberts é a jovem funcionária de um escritório de advocacia que denuncia a poluição causada por uma grande corporação.
 
Nas duas histórias, saltam aos olhos as ideias de Davi lutando contra Golias e da justiça, que tarda mas não falha. É também esse o caso do ótimo Argentina, 1985, em que Ricardo Darín assume o papel do promotor Júlio Strassera, responsável pela condenação dos ditadores argentinos em 1985. Sem deixar de reconhecer seu valor histórico, é fazendo uso da imaginação melodramática que o filme constrói sua narrativa e nos cativa como espectadores.
 
Ricardo Darín e Peter Lanzani em Argentina, 1985 (Divulgação).
 
Alguns grandes filmes saem dessa vala mais comum do melodrama rasgado e fazem um uso mais sofisticado de sua estrutura e modelo. É o caso do clássico Testemunha de Acusação, de 1957, baseado na peça de Agatha Christie (talvez o melhor trabalho da escritora inglesa) e roteirizado e dirigido pelo mestre Billy Wilder.  Nessa narrativa (importantes spoilers adiante), o melodrama é ironicamente posto de cabeça para baixo pela genialidade da autora. 
 
Leonard Vole nos é apresentado como um jovem ingênuo que, por sua bondade, acaba injustamente acusado do assassinato de uma rica senhora de meia idade que se apaixonara por ele e o tornara seu herdeiro. Tudo aponta contra o réu. A situação piora quando Claudine, sua esposa alemã, interpretada por Marlene Dietrich, decide testemunhar para a acusação, corroborando a tese da polícia de que Leonard não apenas não se encontrava em casa na hora do crime, como chegara mais tarde com o paletó sujo de sangue. 
 
Quando tudo parece perdido, uma mulher misteriosa aparece com cartas, que entrega a Sir Wilfrid, advogado de Leonard. Nelas, Claudine se declara a um amante e revela que culparia Leonard do crime para ficarem com a herança e se livrarem dele. Ela é então exposta e o réu, inocentado. 
 
Após o fim do julgamento, entretanto, Claudine revela a Sir Wilfrid que, na verdade, por amá-lo incondicionalmente, armara toda aquela trama para salvar Leonard, pois ele era efetivamente culpado.
 
É hora da máscara de Leonard cair com a entrada de outra mulher em cena - que a câmera, de maneira sagaz, evidenciara sem chamar nossa atenção na plateia do tribunal. Vole se revela então um vilão maquiavélico ao beijar sua amante e dizer que não deve nada a Claudine, a quem já salvara, trazendo-a da Alemanha para a Inglaterra durante a guerra. É a vez da traída esposa então se apossar de uma faca e matá-lo, cumprindo a sentença que antes conseguira evitar. O pano cai com um admirado Sir Wilfrid, que estava prestes a se aposentar, afirmando que terá ainda mais um caso: a defesa de Claudine.
 
Novamente, toda a estrutura da narrativa se constrói sobre o quadro básico de referência do melodrama: a bondade injustiçada, a luta contra o sistema, o idealismo dos heróis, o desejo de redenção. De forma ardilosa, entretanto, essa cena, de heróis e vilões bem definidos, é sucessivamente posta de cabeça para baixo: Claudine passa de paladina da justiça a vilã; Leonard se converte de mocinho ingênuo e indefeso em sociopata; Sir Wilfrid deixa de estar sempre um passo à frente dos acontecimentos para se perceber como um instrumento de todo o jogo. 
 
Marlene Dietrich e Charles Laughton, em Testemunha da Acusação (Reprodução)
 
Todavia, é duas vezes irônico que, com a virada final, em que Claudine mata seu amado, a cena original do melodrama se restabeleça, agora com papéis trocados. Terminamos com uma verdadeira injustiçada, cujo único pecado fora amar demais e confiar em um homem perverso. Não à toa, Sir Wilfrid já antecipa o veredito com que todos concordamos: "Ela não o assassinou, ela o executou" - isto é, Claudine apenas cumprira a justa sentença de morte a que Leonard deveria ter sido condenado. O ciclo do melodrama vai começar uma vez mais.
 
É o mesmo caso do não menos genial O Advogado do Diabo, filme de 1997 estrelado por Al Pacino e Keanu Reeves (spoilers adiante novamente). 
 
Kevin Lomax é um jovem advogado criminalista do interior da Flórida que chama a atenção de um grande escritório de advocacia de Nova Iorque liderado por John Milton, o personagem de Pacino. Aos poucos, o sucesso e o dinheiro o embriagam e o levam a fechar os olhos para tudo o que vê de errado a seu redor, enquanto Mary Ann, sua esposa, interpretada por Charlize Theron, afunda numa espiral de paranoia e medo. Sua ausência contribui para que sua mulher se mate, e ele descobre que ajudara, com seu talento, a inocentar um milionário pedófilo e responsável por triplo assassinato.
 
Por fim, descobre-se filho do próprio John Milton, ninguém menos que Satã em pessoa, que o fizera de fantoche o tempo todo.
 
Keanu Reeves e Al Pacino, em O Advogado do Diabo (Divulgação)
 
Mas fizera mesmo? Na incrível sequência final do filme, Milton demonstra a um incrédulo Lomax que, a cada decisão, sempre lhe dera a possibilidade de escolher, e que fora ele quem optara livremente, em todos os momentos, pelo caminho que o levara até ali. Revela então o ápice de seu plano: que Lomax e sua meia-irmã, a linda advogada Christabella, por quem ele já se sentia atraído, concebam um filho que será o próprio Anticristo.
 
Primeira reviravolta irônica, mas que nos alivia: Lomax, falando em livre arbítrio, saca um revólver e dá um tiro na própria cabeça, para desespero do demônio, que vê seu grande plano frustrado no último instante.
 
Como em Testemunha da Acusação, entretanto, vem, em seguida, a segunda ironia, que recoloca o quadro do melodrama em seu lugar, ainda que numa chave irônica mais moderna. 
 
Voltamos ao início do filme, quando Lomax, ferido em sua vaidade pela provocação de um jornalista, decidira continuar na defesa de um professor acusado de abuso sexual mesmo depois de flagrá-lo excitado com o depoimento da vítima. Nessa segunda versão da cena, entretanto, Kevin volta à sala do júri e renuncia à defesa, mesmo sob pena de ter seu registro de advogado cassado. Tudo aparentemente não passara de uma longa alucinação. 
 
Todavia, quando sai do tribunal, orgulhoso de seus princípios e perseguido pela imprensa, Kevin é novamente abordado pelo mesmo jornalista, que lhe oferece agora a chance de se tornar celebridade nacional com sua história de virtude moral. Lomax fica visivelmente tentado. Quando ele sai de cena, o jornalista se transforma na figura de Al Pacino. Vai começar tudo de novo. Mesmo numa chave mais moderna, cética e sinistra, a promessa de justiça e a possibilidade de redenção permanecem. Nunca deixamos o melodrama.
 
É possivelmente por ser um raro filme de tribunal em que a ideia de justiça não é discutida dentro dos limites da imaginação melodramática que o excelente Anatomia de uma Queda se revele tão incômodo. Dirigido pela francesa Justine Triet e premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Roteiro Original, o filme está agora disponível para streaming. 
 
Samuel, marido de Sandra, representada por Sandra Hüller, morre ao cair do terceiro andar de seu chalé nos Alpes franceses. As circunstâncias e sucessivas evidências sobre uma vida conjugal turbulenta levam à suspeita de que ela o tenha assassinado. O casal tem um filho de 11 anos, Daniel, com deficiência visual, que é testemunha-chave de todo o processo. A exposição de Sandra durante o julgamento, inclusive diante do menino, as interpretações feitas sobre a vida do casal e a impossibilidade de separar versões de fatos nos levam a pensar sobre a misoginia e a fragilidade da vida íntima quando exposta ao julgamento público. 
 
Um título mais literal de Anatomia de uma Queda talvez pudesse ser: "Todo Casamento é a Cena de um Crime". Diante de circunstâncias em que alguém é julgado por uma relação conjugal, quem pode alegar inocência?
 
Nada mais distante do território do melodrama que esse pesado conjunto de questionamentos trazido pela narrativa. Embora, ao fim, Sandra seja inocentada com o depoimento crucial do filho profundamente angustiado - que precisa encarar a hipótese de que talvez o pai tenha se suicidado -, não há redenção nenhuma, nem qualquer promessa de justiça verdadeira no horizonte. 
 
A força do melodrama reside, de certa maneira, no eterno adiamento da justiça por meio da promessa de que ela tarda, mas não falha. Diria a psicanálise que nosso gozo aí reside na verdade na própria situação de injustiça onde, como vítimas, podemos dar sentido ao mundo terceirizando responsabilidades. Fora dela, como em Anatomia de uma Queda, a justiça se revela precária e, no limite, impossível. 
 
Essa é a sensação quando, na cena final, Sandra se deita na cama, aliviada em alguma medida, mas sem certezas. Resta-lhe somente o consolo do cachorro Snoop, que vem se deitar ao seu lado.

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