Das atividades arroladas no conteúdo da nota nº 1 (final do texto), destaca-se o grande concerto patroneado pela “Columbia” discos, realizado no Theatro Lyrico do Rio de Janeiro, no dia 31 de agosto de 1930. Naquela ocasião, Tia Amélia contou com a participação de renomados cantores para a apresentação de suas composições: “Stefana de Macedo, Jesy Barbosa, Vicente Cunha, Sylvio Salema, entre outros”. (Bonavides, 2019). Abaixo, um registro daquele concerto, feito pela Revista Phono-Arte:
Uma declaração de Amélia Brandão a respeito de sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1930 foi publicada no Jornal Última Hora3 do Rio de Janeiro, em 1977. Este depoimento originalmente concedido à jornalista Miriam Camargo foi reproduzido por Brasigóis Felício em seu artigo E os dedos de Tia Amélia não tocam mais a alma do chorinho, publicado no Caderno 2 do Jornal O Popular (20/10/1983) de Goiânia:
O pedido de Ernesto Nazareth
No livro Como é bom poder tocar um instrumento: pianeiros na cena urbana brasileira, o musicólogo Robervaldo L. Rosa (2014, p. 198) chama a atenção para o fato de que, logo após aquele recital ocorrido no Theatro Lyrico do Rio de Janeiro (31/08/1930), Tia Amélia “manteve contato com o pianeiro Ernesto Nazareth [1863-1934] que, encantado com sua música, além de tê-la incentivado a tocar chorinhos comentou”, citando Gilson P. Borges (2007, p. 54):
Quando eu morrer, você continue no choro. Não deixe o choro morrer!
(Fala atribuída a Ernesto Nazareth)
Na opinião de Robervaldo Rosa, aquela solicitação feita por Ernesto Nazareth “marcou profundamente a carreira de Tia Amélia e funcionou para ela como uma bússola”. Como mencionado nas colunas anteriores, embora tenha iniciado o estudo do piano no repertório clássico, assim como Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935), a pianista pernambucana logo enveredou pelos caminhos da música popular. Sobre isso, Rosa (2014, p. 199), citando Gilson Borges (2007, p. 54), traz o seguinte registro:
O primeiro gênero que eu segui foi o clássico (...). Depois passei a folclorista, [de] folclorista a sambista e, quando eu me passei para o choro, foi depois da morte de Nazareth. Ele morreu, eu tomei conta. (Amélia Brandão).
Das fontes consultadas destacam-se duas frases ditas por Tia Amélia a respeito do gênero choro. Em uma delas, a pianeira pernambucana refere-se ao chorinho como o “grande amor de sua vida” (Recorte do Jornal O Popular, autor não identificado e sem data). A segunda, por sua vez, foi reproduzida ao longo do corpo de um artigo elaborado pelo jornalista Brasigóis Felício, em 20/10/1983, para o mesmo jornal goianiense:
“O choro é imortal, bonito e brasileiro”, disse Tia Amélia certa vez, quando de apresentações que fez no Jardim da Luz e Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Efetivamente, essa notável compositora e intérprete levou às últimas consequências essa sua paixão pelo choro, razão pela qual, conforme ela própria declarou, foi afastada das gravadoras (...).
Ao analisar o estilo de composição de Amélia Brandão, o musicólogo Rosa (2014, p. 198) faz uso de algumas palavras do crítico musical José Ramos Tinhorão: “Tia Amélia preserva, de forma íntegra, a brasilidade recebida como herança dos velhos pianeiros de nosso país”. O mesmo Tinhorão é lembrado pelo jornalista Brasigóis Felício (1983): os “Dedos de Tia Amélia acordam no piano a alma do velho choro” (Publicado originalmente no Jornal do Brasil, s.d.).
O patrocínio de Getúlio Vargas
Na mencionada entrevista, publicada em 1977 no Jornal Última Hora do Rio de Janeiro, Tia Amélia esclareceu que, em 1930 não dispunha de um empresário para gerir sua carreira artística. Na realidade, os convites para recitais, em sua maioria, partiam de governadores. E mais: “eu não cobrava nada”.
No início dos anos 1930, ocorreu um episódio inesperado na vida de Tia Amélia. Após uma apresentação na cidade de Belém (PA), a pianeira recebeu um convite enviado por Getúlio Vargas para uma reunião com o então Presidente da República. Tia Amélia falou sobre essa fase de sua carreira em algumas entrevistas concedidas a jornais brasileiros. Para o Jornal Última Hora (1977), ela disse:
Quando Getúlio Vargas subiu, eu estava em Belém e dei um recital. Ele não foi, mandou representante, mas no dia seguinte me chamou e perguntou o que eu queria. Disse a ele que queria ir para o estrangeiro. O Governo me apresentaria às Embaixadas e assim, com tudo pago, percorri as três Américas num trabalho que durou 8 anos.
No artigo intitulado Tia Amélia, lição de vida4 (c. 1977), autor não identificado, veiculado no Jornal O Popular (Caderno 2), lê-se:
Nessa época, já em 32, Getúlio Vargas a incentivou a viajar representando o Brasil. E a partir daí Tia Amélia começou então a compor seus chorinhos, dos quais não se separou mais.
Na matéria O adeus a Tia Amélia, parte integrante do jornal goianiense Diário da Manhã, edição do dia 20/10/1983, o jornalista José Renato Assis registra:
Durante o Governo Getúlio Vargas, [Amélia Brandão] percorreu vários países das Américas do Sul, Central e Norte - uma excursão patrocinada pelo Itamaraty [RJ], com o objetivo de incentivar a música popular e o folclore brasileiros. No roteiro ficou conhecendo Pablo Neruda, Carlos Gardel e Gabriela Mistral.
A jornalista Raquel Ulhôa, também relatando essa passagem em seu artigo Tia Amélia fecha o piano (Diário da Manhã, 1981), fornece mais alguns detalhes:
“Quando subiu o governo de Getúlio Vargas”, então o presidente enviou-a ao estrangeiro. “Visitei 21 países. Fui para a Europa e para as três Américas. Na Venezuela passei dois anos, fazendo estudo sobre música folclórica. Minha filha ia junto (...)”. Depois de seis anos dando recitais por todo o mundo, Amélia Brandão voltou ao Brasil. (Ulhôa, 1981).
Concordando com Rosa (2014, p. 200), percebe-se que a década de 1930 foi intensa para Amélia Brandão. Em um rápido painel, o musicólogo lembra que Tia Amélia realizou turnês pelas Américas. Nesta empreitada, “trabalhou durante cinco meses na Rádio de Schenectady” (EUA), “cumpriu contratos em Nova York e Nova Orleans”. Além disso, “em Hollywood, foi convidada para participar de um filme da RKO, no qual atuaria ao lado da Orquestra de Rudy Vallée, mas não aceitou, visto que o contrato previa que ela atuasse cantando”. Por fim, depois de vários outros países visitados, retornou ao Brasil e, “em 1939, à exceção dos estados de Mato Grosso e Rio Grande do Sul, excursionou [com a filha Silene] por todo o país”.
O casamento da Silene Brandão com o empresário José Pereira de Andrade, ocorrido provavelmente entre 1937 e 1939, determinou uma guinada na vida de Tia Amélia. Com efeito, no auge do sucesso (até então), a pianista resolveu abandonar o Rio de Janeiro e interromper sua carreira artística. Melhor detalhando, sabe-se que Amélia Brandão era muito apegada à filha. Sendo assim, decidiu-se por acompanhar o novo casal que, na condição de representante da VASP
5 (já extinta), seja por opção ou por determinação daquela companhia aérea, seguiu para a cidade de Marília (SP) e, tempos depois, para a jovem capital do Estado de Goiás. Antes de se transferir para Marília, no entanto, organizou um último concerto em um palco digno de uma grande estrela: Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Nota-se que as informações encontradas nas fontes pesquisadas, dentre aquelas inerentes aos acontecimentos que se seguiram ao casamento de Silene Brandão, não são muito precisas, sobretudo quanto às suas datas. Por conseguinte, confiando nas considerações feitas pelos autores Robervaldo Linhares Rosa (2014, p. 201) e Maria Helena Borges (1999, p. 83), é possível dizer apenas que a família de Amélia Brandão, após a citada passagem por Marília (SP), chegou a Goiânia no início da década de 1950.
Senhora Silene Andrade (sd)
Fonte: ICEBE (Goiânia)
No próximo texto será abordada a relação de Tia Amélia com Goiânia até o seu falecimento, em 1983, bem como o retorno da pianeira, na década de 1950, ao cenário artístico carioca, desta feita não apenas nos palcos e nas rádios, mas também por meio de gravações de discos e como apresentadora de programa de TV.
NOTAS:
1) No trecho inicial da descrição do vocábulo “Pianeiro”, oferecido pela Enciclopédia da Música Brasileira; popular, erudita e folclórica, publicada pela Publifolha (2000, p. 625), temos: “Pianista popular que tinha por profissão tocar em cinemas e nas festas familiares - bailes, casamentos (...) - do começo do século [XX]. Outras vezes, era, ele próprio, um compositor conhecido e estimado nos meios musicais (...)”. Complementa o Prof. Robervaldo Linhares Rosa (UFG), em seu livro Como é bom poder tocar um instrumento - pianeiros na cena urbana brasileira (2014) “ (...) casas de música e de instrumentos (executavam as peças escolhidas pelos clientes, auxiliando-os na compra das partituras), restaurantes, bares, confeitarias, academias e ou escolas de danças de salão, e, posteriormente, já no início do século XX, salas de cinema (tanto as de espera, como as de exibição do filme mudo, para o qual eles interpretavam a trilha sonora ao piano), enfim, uma ampla gama de espaços urbanos dedicados ao entretenimento (...)”. Claro, para um bom entendimento do termo “Pianeiro”, seria necessário viajar pelos contextos histórico, social e cultural, inicialmente, da sociedade carioca, ainda nos anos “Novecentos”. Nesse sentido, Rosa (2014) salienta que “a intensificação da vida social e urbana ocorrida durante toda a segunda metade do século XIX”, somada “à formação de uma incipiente música popular feita para o entretenimento dos urbanistas, estabeleceu-se um nicho no campo musical”. Por outro lado, ”a demanda por um profissional que executasse ao piano música popular voltada ao lazer, não podia ser atendida pelas moças ‘bem-nascidas’ [e prendadas] da sociedade - que, necessariamente, tocavam o instrumento, mas quase exclusivamente no espaço doméstico - nem pelos pianistas de repertório clássico-romântico. Tal conjuntura contribuiu, de forma decisiva, para que surgisse um novo profissional: o pianeiro”.
2) Em publicação datada de 25/05/2021, Marcelo Bonavides disponibiliza mais de uma dezena de recortes de matérias publicadas em jornais ou revistas encontradas no Acervo da Biblioteca Nacional, os quais descrevem os pormenores daquela viagem. Abaixo, alguns exemplos:
• Participação em um sarau realizado na casa de Ernesto Nazareth, em seu apartamento nas Laranjeiras (Jornal A Noite, de 05/08/1930, p. 05);
A Noite, 05 de agosto de 1930, p.05
• Performance em um sarau organizado na residência do General Serzedello Corrêa, no Palacete de Conde de Bonfim. (Diário Carioca, 1930).
• Audição destinada à imprensa carioca visando à divulgação do trabalho de Tia Amélia (interpretação e composições), ocorrida na casa da cantora Stefana de Macedo. (O Diário da Noite, de 03/07/1930; Diário Carioca, de 04/07/1930, p. 02);
• Atuação da pianeira (ao vivo) na programação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em duas datas: 10 de julho (O Paiz [País], de 10/07/1930, p. 04) e 26 de julho (A Batalha, de 26/07/1930, p. 06). Também há evidências de que, por aquele período, Tia Amélia tenha interpretado suas composições em outras duas emissoras: Rádio Mayrink Veiga e Rádio Clube do Brasil;
• Apresentação da musicista pernambucana em uma palestra. (Correio da Manhã, de 13/07/1930);
• Interpretação de suas obras em um recital no Theatro Lyrico do Rio de Janeiro, em 31/08/1930, patrocinado pela “Empreza Phonographica Columbia” [escrita da época]. Título do Evento: Festival da Sra. Amélia Brandão Nery. A divulgação do concerto, contendo informações sobre a venda de bilhetes, o repertório etc., foi realizada por diversos veículos de comunicação, entre eles: A Batalha, edições dos dias 15/07/1930 (p. 06) e 10/08/1930 (p. 04); Correio da Manhã, de 17/07/1930 (p. 06); Revista Fon Fon, 1930; Revista da Semana, 1930; Revista O Que Há, 1930.
4) Não foi possível identificar o nome do autor de Tia Amélia, lição de vida. É importante mencionar, entretanto, que seu artigo foi elaborado a partir de um depoimento concedido por Dona Silene Andrade (filha de Amélia Brandão). Ademais, o texto explora partes de uma entrevista concedida pela própria Tia Amélia, em data anterior (também não mencionada) à repórter Miriam Camargo do Jornal Última Hora. Uma frase encontrada no início da matéria: “No último mês de março, segundo contou ao jornal Última Hora, Tia Amélia realizou uma apresentação (...)”. No entanto, é pertinente mencionar que Brasigóis Felício, em seu artigo E os dedos de Tia Amélia não tocam mais a alma do chorinho (O Popular, 20/10/1983) traz a seguinte revelação: “Em 1977, quando concedeu esta entrevista ao jornal Última Hora, Tia Amélia disse: “Eu não estou pensando em parar não”. Deduz-se, assim, que o artigo Tia Amélia, lição de vida foi veiculado no ano de 1977.
5) VASP (Viação Aérea São Paulo) fundada em 1933, foi uma das maiores companhias aéreas brasileiras. Teve sua falência decretada na primeira década dos anos 2000.
Amélia Brandão