Estercio Marquez Cunha é professor aposentado da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás [EMAC/UFG]. Nasceu na cidade de Goiatuba, interior do Estado de Goiás, em 1941, e, no ano seguinte, passou a residir em Goiânia. Nesta Capital, iniciou seus estudos musicais. Já na década de 1960, cursou três bacharelados no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro: “Piano”, “Composição” e “Regência”. Em dezembro de 1965, casou-se com Maria Lúcia Ferreira Marquez Cunha. Em 1967, ao ser aprovado em um concurso no Instituto de Artes da UFG [atual EMAC/UFG], retornou com a esposa para Goiânia. E, no final da década de 1970, mudou-se com a família - esposa e três filhos - para a cidade de Oklahoma City, Estado de Oklahoma (EUA), a fim de cursar Mestrado na Oklahoma City University. Em seguida, no ano de 1982, na cidade de Norman, naquele mesmo Estado americano, obteve, desta feita, na Oklahoma University, o título de Doutor.
Conheço o professor Estercio Marquez Cunha há muito tempo. Nos anos 1980, por exemplo, fui seu aluno no Curso de Bacharelado em Música, no antigo Instituto de Artes da UFG (atual Escola de Música e Artes Cênicas - EMAC). De fato, depois disso, nos tornamos amigos. Ademais, trabalhamos juntos no Projeto “Música para Violino” (pdf no final da Coluna), por meio do qual já foram publicados dois livros que disponibilizam ao público a edição (acrescida de comentários analíticos etc.) de algumas das peças musicais constantes do catálogo de obras do ilustre compositor goiano.
Ainda no ano de 2020, visando atender às necessidades de um Curso de Pós-Graduação, realizei uma longa entrevista com o Professor Estercio. Na verdade, foram três sessões virtuais, pelo aplicativo
Zoom, cada uma delas com a duração aproximada de uma hora. Abaixo, a transcrição da parte inicial do nosso bate-papo, mais especificamente, aquela que armazena seus principais registros biográficos, desde a sua infância até fins dos anos 1960. Antes, gostaria de fazer uma última consideração: Vou me dirigir ao entrevistado utilizando o pronome pessoal de tratamento você, visto que, certa feita, ele me “proibiu” de chamá-lo de senhor.
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Othaniel Alcântara: Parece um detalhe sem importância, mas, inicialmente, eu gostaria de esclarecer dois pontos em relação ao seu nome. O primeiro deles: Estercio não tem acento na segunda letra “e”.
Estercio Marquez Cunha: Isso. Eu escrevo sem acento [Estercio].
Othaniel: Onde fica o acento tônico do seu segundo nome “Marquez” (sem acento)?
Estercio: Na última sílaba [Marquêz]
Othaniel: Sei que você nasceu em Goiatuba, cidade do interior do Estado de Goiás, em 24 de maio de 1941. Eu gostaria de saber um pouco sobre seus pais.
Estercio: O nome do meu pai é Glicério Ferreira Cunha. Eu posso dizer que não conheci meu pai, pois quando ele morreu [em 1942], eu tinha um ano de idade. Meu avô [por parte de pai], o Sr. Fernando Cunha, pertencia a uma conhecida família da cidade de Rio Verde [Goiás]. Dos meus tios, por exemplo, o Fernando da Cunha Júnior foi político aqui em Goiás durante muito tempo. Já a minha mãe, a Dona Estherlina Marquez Cunha, era natural de Itumbiara.
Eu nasci em Goiatuba porque o meu pai havia sido, na “Era Vargas”, nomeado pelo interventor - Dr. Pedro Ludovico Teixeira [1891-1979] -, para ocupar o cargo de Prefeito daquela cidade. Meu pai era dentista, mas tinha muita vontade de fazer o Curso de Direito. Assim, em 1942, um ano após o meu nascimento, meus pais vieram para Goiânia. À época, minha mãe estava grávida do meu único irmão: Amauri Cunha [n. 1942].
Pouco tempo depois da nossa vinda para Goiânia, meu pai voltou a Goiatuba para poder organizar as coisas da Prefeitura, enfim, para entregar a Prefeitura. Então, ele resolveu ir pescar no Rio Meia Ponte e pegou a febre amarela. Quando voltou para Goiânia, ele já veio em estado de coma.
Estercio Marquez Cunha (n. 24/05/1941)
Fotografia "Foto Berto" (agosto de 1942)
Acervo: Familia Cunha
A minha mãe foi mãe e pai para nós dois [Estercio e Amauri]; o tempo todo! Ela foi uma mulher de uma força incrível! Nunca admitiu que a gente morasse com outras pessoas etc. Nós tínhamos que ter nossa casa. Ela foi funcionária do antigo IAPC. Ela foi muito companheira, uma mulher muito esclarecida, enfim, tudo aquilo que mãe ou pai tinha que fazer ela fez. Ela sempre apoiou demais tudo aquilo que a gente queria fazer, nos limites do que poderíamos fazer.
Da esquerda para a direita:
Amauri Cunha (n. 1942), Dona Estherlina e Estercio Marquez Cunha (n. 194
Fotografia "Foto Berto" (setembro de 1943)
Acervo: Familia Cunha
Da esquerda para a direita:
Amauri Cunha, Dona Estherlina e Estercio Marquez Cunha
Fotografia "Foto Berto" (sd)
Acervo: Familia Cunha
Othaniel: Onde mesmo que você disse que a sua mãe trabalhava?
Estercio: IAPC: Instituto de Aposentadoria dos Comerciários. Dos antigos IAPs. Isso não é do seu tempo [risos]. Getúlio Vargas criou os IAPs, que hoje é o INSS. Cada organismo tinha seu instituto. Era um programa muito bom!
Othaniel: Em qual ou quais instituições você fez o ensino formal?
Estercio: Primeiro, eu fui aluno do Grupo Escolar do Instituto de Educação. Não sei se essa Escola ainda existe. Bom, depois eu estudei, acho que durante um ano, no Ateneu Dom Bosco. Logo em seguida, fiz uma prova de admissão para O Liceu. A partir de então, sempre fui aluno do Liceu de Goiânia.
Othaniel: Como era o Liceu naquele tempo?
Estercio: O Liceu foi, realmente, uma escola padrão. A formação era muito boa. E os professores eram ótimos! Lá, aconteceram coisas fantásticas, as quais me marcaram bastante. Em um determinado momento, o Liceu encontrava-se um pouco sujo e com algumas coisas quebradas etc. Então, o Padre Serra - não me lembro do nome completo - passou a ocupar o posto de Diretor. Em seguida, ele começou a discutir com os alunos, não apenas os aspectos inerentes à sala de aula, mas nos fazia perguntas do tipo: Por que você quer ficar na sujeira? Enfim, ele iniciou um processo de socialização e, aos poucos, foi induzindo a gente a tal ponto que nós colaboramos no sentido de não apenas deixar mais limpas as dependências do Liceu como, também, participar de consertos de banheiros etc. A propósito, fizemos um jardim na frente da Escola. Tinha um flamboyant lá que fui eu que plantei. Ou seja, passamos a nos interessar mais pela Escola, pensar nela como um lugar da gente. O pertencimento nisso foi muito importante (...).
Othaniel: E as aulas de Música no Liceu? Você conheceu o professor Joaquim Edison de Camargo lá?
Estercio: Sim, sim! Fui aluno de “Canto Orfeônico” sob a orientação do professor Joaquim Edison, no Liceu. Nas aulas, ele ensinava “Teoria Musical” também. Ele juntava os alunos para o “Coro”. E, naquela época, uma colega nossa, a Yara [ou Iara] Naves fazia, ao piano, o acompanhamento das músicas cantadas pelo Coral do Liceu. Acho que ela era aluna [piano] da Dona Belkiss. Tinha todo aquele repertório de música goiana, né? Noites Goianas, etc. etc. etc. Foi uma experiência muito interessante, porque, à essa altura, eu já estudava música no Conservatório [Conservatório Goiano de Música].
Há pouco, eu estava falando sobre o aspecto da socialização no Liceu. Às vezes, os ensaios do Canto Orfeônico eram realizados aos sábados. Mas depois, o que o Padre Serra organizava? Tinha baile! Juntava os meninos e as meninas (...), enfim a socialização ali era um negócio fantástico, fantástico! O tempo do Liceu foi um tempo que realmente me marcou muito.
Joaquim Édison de Camargo (1900-1966)
Fonte: ICEBE (Goiânia)
Othaniel: Você se lembra do ano em que você entrou no Liceu? Sobre isso, eu li em trabalho acadêmico: “Ainda por volta de 1958 [Estercio] fez o curso científico no Lyceu de Goiânia”.
Estercio: No final de 1959, eu fui para o Rio. Então, entrei no Liceu bem antes disso.
Othaniel: E quando você terminou seus estudos no Liceu?
Estercio: Acho que foi em 1959.
Othaniel: Antes disso, de que forma a música entrou em sua vida? E como começou o contato formal com a música?
Estercio: Olha, eu gostava muito de escutar rádio, principalmente no começo da manhã. Aqui em Goiânia, o rádio, de manhã, tocava a música caipira, né? E aquilo me encantava muito. Era engraçado porque eu escutava meio que escondido. Para o pessoal lá de casa, aquilo não era música de bom gosto. Mas, eu gostava demais! Gostava não, gosto muito disso aí! Nessa época, menino
* pequeno ainda, comecei a estudar piano com a Dona
Amélia Brandão Nery [1897-1983].
Estercio:
Tia Amélia! Exatamente! Era muito engraçado... Eu fazia as aulas de piano com a Dona
Amélia porque eu queria brincar com os netos dela, o “Zezo” e o Ademar. Por isso, com a
Tia Amélia, eu aprendi muito pouco. Eu não tinha esse interesse assim não.
Tia Amélia (1897-1983)
Acervo: Luiz Antônio de Almeida
* Para a pesquisadora Marina Machado Gonçalves, em sua Tese de Doutorado intitulada As Canções de Estercio Marquez Cunha sob o ponto de vista do pianista colaborador, o compositor teria começado a estudar piano com a Dona Amélia Brandão “mais ou menos aos nove anos”. (Gonçalves, 2014, p. 05).
Estercio: De fato, eu realmente comecei a estudar o piano com mais interesse, já com meus 14 ou 15 anos de idade [por cerca de dois anos, com a Dona Nize de Freitas].
Voltando à história do piano [...], eu acho que a minha primeira “sacudida” musical aconteceu durante um feriado de Semana Santa. Como já disse, o rádio aqui em Goiânia tocava música caipira. Contudo, tinha um dia no ano em que o rádio tocava apenas música clássica: era a Sexta-Feira da Paixão. Na realidade, não podia tocar outras músicas. Naquele dia, tocou uma música que eu fiquei, assim, alucinado. Escutei tudo aquilo, gostei demais e queria saber o que era aquela música.
Em seguida, corri para a Rádio [emissora]. Nós éramos vizinhos da Rádio Clube de Goiânia. Eu era vizinho, mesmo, de parede: na Rua 2 [Centro]. Foi então que fiquei sabendo que o nome da música era: A Sagração da Primavera do [Igor] Stravinsky [1882-1971]. Mas, como escutar novamente aquela obra?
Aqui em Goiânia, tinha o SAPS
1 , um serviço de assistência que funcionava na Rua 01 [Centro], em frente a uma propriedade que, posteriormente, foi a sede do Conservatório. No SAPS, além de um restaurante, tinha uma biblioteca e, também, uma discoteca. A discotecária era uma moça muito bonita, por isso eu gostava muito de ir lá [risos]. Para a minha sorte, ela tinha o disco. Escutei várias vezes aquela obra [
A Sagração da Primavera]. E, a partir de então, comecei a escutar outras coisas. Acho que essa foi a minha primeira descoberta musical. Lembrando que, por essa época, eu já estava começando a estudar piano com a
Tia Amélia.
Othaniel: Quando você começou a trabalhar?
Estercio: Olha eu comecei a trabalhar cedo. Com 15 anos eu tive minha primeira carteira de trabalho assinada. Primeiro, trabalhei como entregador na... [em uma famosa rede de farmácias], que havia acabado de se instalar em Goiânia. Eu trabalhava o dia todo, correndo com uma bicicleta, entregando remédios. Depois, eu fui telefonista no Hotel Presidente, na Av. Anhanguera, ali perto do Jóquei Clube. À essa altura, eu já estava estudando o piano com a Senhora Nize de Freitas, a Dona Nizinha [filha do primeiro prefeito de Goiânia, Sr. Venerando de Freitas Borges2 ].
Um certo dia, ela me perguntou se eu gostaria de ser assistente dela. Passei a ensinar Teoria Musical e Solfejo para os menininhos que estavam começando. Se, por um lado, eu deixei de trabalhar com carteira assinada, por outro, passei a trabalhar numa área que eu tinha mais interesse. Ganhava meus trocadinhos! [Risos].
Dona Nizinha (1933? - 2019)
Othaniel: E a ideia de ir para o Conservatório Goiano de Música?
Estercio: Fiz a preparação com a Dona Nizinha e prestei o exame para o Conservatório. Naquele tempo, o CGM era, essencialmente, uma escola de piano. Ali, fui aluno de piano da professora
Dona Dalva Maria Pires Machado Bragança. Dona Dalva era uma ótima professora. Foi uma pessoa que me incentivou demais. Ela sempre me falava: “Você tem que ir embora daqui! ”
Há pouco tempo eu estava assistindo ao filme Cinema Paradiso. É um filme maravilhoso e que me emociona muito, sempre. Aquela cena do velho cochichando no ouvido do menino e dizendo mais ou menos assim: “Vai embora, eu não quero ver você aqui não! ” sempre me toca muito. Eu fico me lembrando muito daquela época. Enfim, foi por esse tipo de incentivo que eu tomei a decisão de estudar no Rio de Janeiro (...).
Profa. Dalva Maria Pires Machado Bragança
Othaniel: Além do piano, você se lembra de outras disciplinas cursadas no Conservatório Goiano de Música?
Estercio: Fiz “Teoria Musical”, fiz “Solfejo” com a
Dona Fifia [
Maria Lucy Veiga Teixeira]. Tinha o “Canto Coral”, também com a Dona Fifia (...). Nesse Coral, eu tive uma experiência ótima, engraçadíssima. Naquela época, o Conservatório praticamente não tinha alunos homens. Lembro-me do Joaquim Jayme [futuro Regente de orquestras em Goiânia] e eu. Lembro-me, também, que escutávamos música com o professor
Jean Douliez. Eram obras de Beethoven, Mozart etc. Como disse, a Dona Fifia pedia pra gente cantar no Coral; dizia que precisava da gente. E eu já estava naquela fase “jumento”, né? [Risos]. Minha voz não segurava. Mas a Dona fífia insistia sempre.
No dia da apresentação do Coral, não me lembro o local, a Dona Fifia me disse mais ou menos assim: “Estercio, vamos fazer o seguinte: na hora que for começar, se eu vir que você está desafinando, eu faço um gesto pra você assim [gesto], então você só finge estar cantando [risos]. Foi ótimo, porque na hora que ela deu o primeiro sinal para a entrada - início da música -, ela já fez assim [gesto combinado] pra eu não cantar [risos]. Na realidade, eu gostava de estar no Coral. Mas era impossível! Na minha adolescência, minha voz não parava no lugar de jeito nenhum. Era muito desafinado!
Profa. Maria Lucy Veiga Teixeira (Dona Fifia)
Fonte: ICEBE (Goiânia)