Algumas observações
É imprescindível deixar registrado que o “Instituto de Música” é o embrião da atual Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG). Melhor dizendo, aquele Departamento de Música da EGBA tornou-se independente em 1956, adotando o nome de Conservatório Goiano de Música. Depois, passaria a ser chamado de Conservatório de Música da UFG, em 1960. Em 1972, recebeu a denominação de Instituto de Artes, o qual, posteriormente - em 1996 - foi divido em duas unidades: Escola de Música (EM) e Faculdade de Artes Visuais (FAV) para, então, no ano de 2000, receber a alcunha atual de (EMAC/UFG).
Também é preciso ter em mente que o presente texto tem como enfoque o encadeamento de fatos que permitiram a criação do Instituto de Música/EGBA. Duas das últimas postagens desta coluna (links abaixo) foram dedicadas a Jean Douliez. Nessas publicações, as quais foram consubstanciadas, sobretudo, nas pesquisas de Marcia (assim, sem acento) Terezinha Brunatto Bittencourt (2008), buscou-se divulgar, de forma mais detalhada, a trajetória do Maestro Douliez, desde sua formação musical e intelectual na Bélgica, passando pela opção de residir no Brasil, a partir de 1949.
O convite feito a Jean Douliez
O próprio maestro Jean Douliez (Hasselt, Bélgica, 16/03/1903 - Bruxelas, 09/10/1987) é quem confirma o ano de sua chegada a Goiânia:
Era então fins de 1954, quando cheguei, vindo da Bélgica a chamado do
Prof. Henning Gustav Ritter, da Escola Goiana de Belas Artes [EGBA],
velho amigo que conheci em Araxá em 1947
e mais tarde em Belo Horizonte.
(Douliez, 1958 apud Pina, 2002, p. 57).
De fato, para Maria Helena Jayme Borges (1999, p. 100), em 1954, depois de algum tempo residindo em Belo Horizonte (desde 1949), o renomado músico Jean-François Douliez havia viajado para a sua terra natal. Todavia, por meio de correspondências trocadas com o amigo Gustav Ritter, manifestara o desejo de retornar ao Brasil.
Foi assim, por meio de carta, que Jean Douliez foi convidado pela direção da recém-criada EGBA para a missão de liderar o processo de constituição de um Departamento de Música naquela Instituição, o qual ficaria conhecido como “Instituto de Música”. (Borges, 1999, p. 100).
Esclarece a Profa. Maria Helena, que os mandatários da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) tiveram o cuidado de conscientizar o maestro Jean Douliez no sentido de que aquela “tarefa” teria “um certo caráter de apostolado, pois nada poderiam garantir em matéria de remuneração”. Segundo a autora, mesmo assim, o músico belga
Aceitou o convite e veio para Goiânia, com toda a sua bagagem.
Eram malas e malas com grande quantidade de partituras,
composições e arranjos de sua autoria. Por ocasião de sua chegada,
foi montada na escola uma exposição de suas partituras,
a fim de que o público conhecesse as peças trazidas pelo maestro.
(Borges, 1999, p. 100).
Marcia Bittencourt (2008, p. 35) conta que, ao chegar a Goiânia (em fins de 1954), Jean Douliez teve como primeira atividade profissional a atribuição de lecionar música a “um dos filhos do então governador [interino] do Estado de Goiás”, o Senhor Jonas Ferreira Alves Duarte (1908-1993). Efetivamente, as aulas de música na EGBA foram iniciadas no dia 17 de janeiro de 1955.
Mas, como Jean Douliez veio parar no Brasil?
Considerando o resultado das pesquisas de Marcia Bittencourt (2008) pode-se afirmar que, na década de 1920, Jean Douliez já era um destacado instrumentista na Europa. De 1924 a 1926, o violinista concretizou duas grandes turnês. A primeira delas, pelas principais cidades alemãs. Já a segunda foi pela América do Sul, quando visitou, na sequência: o Brasil, o Uruguai e a Argentina.
Data desta época, 1926, o início de sua amizade com o compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. É provável que os dois músicos tenham mantido algum tipo de contato nos anos seguintes. Em relação a isso, sem oferecer maiores detalhes, Marcia Bittencourt menciona pelo menos mais um encontro entre Douliez e Villa-Lobos, desta vez em solo francês, nos anos 1940.
Na coluna intitulada
Jean Douliez (1903-1987): Alguns dados biográficos (postada em 05/04/2021) ficaram registradas mais algumas informações acerca da formação musical e intelectual na Bélgica, bem como aquelas relativas aos anos iniciais da carreira profissional do músico belga, seja como violinista, seja como regente. Incluem-se, nessa fase, a realização de outras turnês em países da Europa, em cidades indianas e vietnamitas, além de outras tantas em diversos países africanos.
Reitera-se que uma convivência mais próxima entre Jean Douliez e Villa-Lobos ocorreu somente a partir de meados dos anos 1940, quando o músico belga participou de três missões artísticas no Brasil, todas patrocinadas pelo governo belga. As duas primeiras, realizadas em 1946 (ou 1946 e 1947), tiveram como destino a cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal; enquanto a última, em 1949, foi empreendida em cidades do Estado de Minas Gerais.
De acordo com Marcia Bittencourt, encerrados os seus compromissos concernentes à terceira Missão Artística belga em solo brasileiro, em 1949, Jean Douliez tomou a decisão de se distanciar das atividades diplomáticas e fixar residência em Belo Horizonte. Assim, já morando na capital mineira, recomeçou a sua vida profissional.
Conforme atesta Bittencourt (2008, p. 14), nesse período, dentre outros feitos, Jean Douliez fundou, em agosto de 1949, a Escola de Formação Musical, a Orquestra Sinfônica e o Coro Orfeônico, todos corpos artísticos estáveis vinculados ao Departamento de Instrução da Polícia Militar de Minas Gerais.
Foi neste órgão público que o maestro belga conheceu e fez amizade com o
Dr. Juscelino Kubitschek (1902-1976), então Capitão-Médico daquela Corporação. Ou seja, antes que JK se tornasse Governador daquele Estado, em 1951, e Presidente da República, em 1954.
Morar e trabalhar em Goiânia?
(Os conselhos dos amigos Juscelino Kubitschek [JK] e Heitor Villa Lobos)
Relata Marcia Bittencourt que, no início de 1954, Jean François Douliez encontrou-se com o amigo de longa data, Juscelino Kubitschek - então governador de Minas Gerais (1951-55) -, em seu escritório, para comunicar-lhe que estava propenso a trocar seu vínculo empregatício com a polícia Militar do Estado de Minas Gerais pelo desafio de conceber uma primeira Escola de Música na jovem cidade de Goiânia.
Como justificativa ao amigo JK, o Maestro Jean Douliez tornou público o convite procedente da direção da Escola Goiana de Belas Artes, no sentido de liderar o processo de abertura do Instituto de Música daquela Entidade sediada na capital do Estado de Goiás, distante 230 quilômetros da futura capital do país, Brasília.
A título de “conselho”, o governador Juscelino Kubitschek sugeriu a Douliez que, antes de tomar sua decisão,
Analisasse bem os prós e os contras de uma mudança tão radical,
uma vez que os contras eram maiores do que os prós.
(Bittencourt, 2008, p. 18).
Então, em outubro de 1954, Jean Douliez viajou à Goiânia com o objetivo de melhor examinar a situação. Segue historiando Márcia Bittencourt que, após três semanas, “decidiu que aceitaria a incumbência de fundar o Instituto de Música da Escola Goiana de Belas Artes; retornou a Belo Horizonte para comunicar sua decisão à Escola Militar e Orquestra Municipal”. (Bittencourt, 2008, p. 18).
No entanto, antes de se estabelecer definitivamente em Goiânia, viajou também para o Rio de Janeiro, onde, entre outros compromissos, teve um encontro de despedida com o amigo Villa-Lobos. Naquela oportunidade, o compositor brasileiro lhe disse:
Meu bom amigo Douliez:
O que vai fazer no distante oeste brasileiro, no meio dos índios?
É melhor você me dar seus dois violinos que te dou dois revólveres no lugar.
(Douliez, 1978, apud Bittencourt, 2008, p. 18).
Essa curiosa narrativa - atribuída ao maestro Jean Douliez - também é explorada nas publicações do autor Braz Wilson Pompeu de Pina Filho (1988, p. 71)
Como aludido, Jean Douliez passou a morar em Goiânia no final do ano de 1954. Em pouco tempo, fez todo o planejamento objetivando iniciar as atividades do almejado Instituto de Música da EGBA no ano letivo de 1955.
Janeiro de 1955: Estava criado o Instituto de Música da EGBA
A instalação do Instituto de Música da EGBA foi oficializada em 15 de janeiro de 1955 (Borges, 1999, p. 102; Pina, 2002, p. 54). No entanto, no mês anterior, uma nota contendo a relação completa dos cursos de música oferecidos pelo novo Departamento da EGBA, acompanhada de informações básicas direcionadas à comunidade goianiense foi preparada e divulgada por Jean Douliez na edição do dia 28 de dezembro de 1954, do conhecido Jornal goiano: O Popular.
Até o momento, não foi possível para este pesquisador ter acesso ao supramencionado documento. Contudo, a transcrição1 dessa matéria (ver nota no final do artigo) encontra-se grafada em obras de, pelo menos dois autores goianos: Braz Wilson Pompeu de Pina Filho (2002, p. 54; 1988, pp. 59-60) e Maria Helena Jayme Borges (1999, p. 101).
Os primeiros pianos do Instituto de Música
A pesquisadora Maria Helena Jayme Borges (1999, p. 103) afirma que o primeiro piano da EGBA foi um castigado móvel pertencente ao Museu Estadual de Goiás (atual
Museu Zoroastro Artiaga, Praça Cívica). Ao recebê-lo na forma de doação feita pelo Professor Zoroastro Artiaga, a administração do Instituto de Música providenciou a recuperação e afinação daquele instrumento musical. Embora não mencione a data, a autora alude que,
a posteriori, “um segundo piano foi comprado, à prestação, de Walter Campos”.
Se por um lado os episódios acima demonstram a precariedade do Departamento de Música da Escola Goiana de Belas Artes, por outro, sua existência contribuiu imensamente para a divulgação da EGBA e, consequentemente, para o desenvolvimento da música e das artes plásticas em Goiás.
A necessidade de mais professores no Instituto de Música
Nas palavras da professora Maria Helena (pp. 102-103), o ensino musical promovido pela EGBA suscitou bastante interesse na comunidade goianiense. Para a autora, expondo o depoimento do professor Luiz Curado - à época, Diretor Geral da EGBA - cerca de 75% dos alunos daquela Instituição, em 1955, eram da área de Música.
Apesar disso, segundo a professora Maria Helena, nos seus primeiros meses de existência, aquele Departamento de Música contou apenas com o Maestro Jean Douliez como professor, o qual ministrava aulas de instrumentos de cordas, teoria e piano.
Por conseguinte, em conformidade com as alegações de Orlando Ferreira de Castro (2008), citado por Marcia Bittencourt (2008, p. 35), após o Instituto de Música ter sido organizado por Jean Douliez (em fins de 1954) e estar em pleno funcionamento (a partir de janeiro de 1955), a direção da EGBA tomou a decisão de arregimentar mais professores de música para a Instituição.
Março de 1955: Dona Belkiss Spenzieri é integrada ao corpo docente da EGBA
Aconteceu que, ainda no início de 1955, a direção da EGBA tomou conhecimento de que a pianista Belkiss Spenzieri (1928-2005) havia se movimentado durante o governo de Jerônimo Coimbra Bueno (1910-1996), ocorrido entre março de 1947 e junho de 1950, no sentido de criar uma escola de música em Goiânia. Tratava-se da tentativa de realização de um antigo sonho de sua avó e primeira professora de piano, a Senhora Maria Angélica da Costa Brandão (1880-1945), conhecida como Nhanhá do Couto.
Foi então que Luiz Curado - cofundador e Diretor daquela Instituição -, certamente em comum acordo com Jean Douliez - Diretor do Instituto de Música -, decidiu convidar a então jovem musicista goiana para integrar o quadro de professores da Escola Goiana de Belas Artes. Nas palavras de Marcia Bittencout (2008, p. 35), Luiz Curado “convidou-a em março de 1955”.
Em seguida, por indicação de Belkiss Spenzieri, foram invitadas pessoalmente por Luiz Curado para também integrarem o corpo docente do Instituto de Música, mais quatro pianistas, todas alunas ou ex-alunas de Belkiss: Maria Lucy Veiga Teixeira, Maria Luíza Póvoa da Cruz e Dalva Maria Pires Machado Bragança (Bittencourt, 2008, pp. 35-36; Borges, 1999, p. 102).
No livro A Música em Goiás, a professora Belkiss S. C. de Mendonça (1981, pp. 363-364) arrola o nome das disciplinas ministradas na EGBA por cada uma das quatro professoras mencionadas anteriormente:
• Belkiss S. C. de Mendonça: Piano, Harmonia e Morfologia;
• Dona Fifia (Maria Lucy Veiga Teixeira): Piano e Canto Coral;
• Dona Tânia (Maria Luiza Póvoa da Cruz): Piano e Iniciação Musical;
• Dalva Maria Pires Machado Bragança: Piano e História da Música.
É provável que os leitores que conhecem ou conheceram os personagens que deram origem à primeira escola de música da Capital do Estado de Goiás tenham notado a falta do nome de mais uma importante professora pioneira do ensino musical em Goiânia. Conquanto não faça menção à data de contratação, Belkiss Mendonça (1981, p. 364) diz que, pouco tempo depois, mais uma de suas ex-alunas integraria aquela equipe: Maria das Dores Ferreira de Aquino (Dona Dorinha).
Observa-se, pois, que em razão das novas contratações, o Diretor-Fundador do Instituto de Música, Maestro Jean Douliez, direcionou o ensino de piano do Instituto de Música (o mais concorrido), bem como algumas matérias teóricas às jovens professoras goianas.
Nessa trilha, em uma entrevista datada de 2008, constante da Dissertação de Mestrado de Marcia Bittencourt, a professora Maria Lucy Veiga Teixeira (Dona Fifia) recorda que:
Já havia um trabalho sendo feito há muito tempo no piano
[aulas particulares], mas, a música de conjunto foi, significativamente,
ampliada e inovada pela intervenção do Maestro
[fundador da primeira escola de música em Goiânia], que era polivalente:
multi-instrumentista, professor, maestro, compositor, que, com suas ações,
abrangeu várias áreas da música ajudando, inegavelmente,
a ampliar o horizonte musical da capital de Goiás.
(Teixeira, 2008 apud Bittencourt, 2008, p. 53; grifo nosso).
Marcia Bittencourt ressalta que a percepção da professora Maria Lucy é compartilhada por todos aqueles entrevistados que contribuíram para o processo de concepção de sua Dissertação de Mestrado, “inclusive as professoras aposentadas da Escola de Música da UFG e participantes da Orquestra Feminina [assunto para uma futura coluna]. Nesta senda, a investigadora cita os seguintes nomes: “Mirza Perotto, Wanda Fleury Amorim, Helena Craveiro Carvalho de Resende, Heloísa Helena de Velasco” (Bittencourt, 2008, p. 53).
Finalizando, comenta-se que Jean Douliez não era afeito às questões administrativas e burocráticas do Instituto de Música (Borges, 1999, p. 102). Ora, o Maestro sempre demonstrou um enorme entusiasmo pelo ofício do ensino musical propriamente dito. Ademais, à época o músico belga procurava ampliar2 as atividades culturais artísticas em Goiânia. Desta forma, sem demora, as tarefas relacionadas à gestão do Instituto de Música da EGBA foram direcionadas à pianista Belkiss Spenzieri.
Ou seja, em algum momento, talvez próximo à emancipação do Instituto de Música e consequente troca de nome para Conservatório Goiano de Música, em 1956, “uma alteração da diretoria foi realizada, fincando na presidência de honra o Maestro Jean François Douliez e como Diretora D. Belkiss”. (Pina, 2002, p. 57).
Mas, essa é uma outra história!