Antes de mais nada, é imprescindível esclarecer que o texto abaixo foi baseado em um trecho da longa entrevista realizada, ainda em 2020, com o importante maestro brasileiro Emilio De Cesar (n. 1947). E, bem como nas duas últimas postagens, o conteúdo abaixo retrata as primeiras experiências musicais do maestro Emilio, ainda nos anos 1950 e 1960.
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Também, é relevante mencionar que o maestro Emilio De Cesar foi Regente Titular das duas orquestras profissionais de Goiânia: Orquestra Filarmônica de Goiás (1992 a 1994) e Orquestra Sinfônica de Goiânia (2003 e 2004).
Aqui, cabe lembrar que, nos parágrafos finais do último texto, foi dito que, em 1965, o pai de Emilio De Cesar - Sr. Esaú de Carvalho -, o qual era diretor da Rádio Educadora do Ministério da Educação e Cultura, seguiu para os Estados Unidos com o objetivo de visitar as emissoras de rádio que desenvolviam trabalhos educacionais.
Maestro Emilio De Cesar
Lá, entre um e outro compromisso, o Sr. Esaú de Carvalho aproveitou a oportunidade para visitar seu irmão, o maestro Eleazar de Carvalho (1912-1996) que, desde 1963, era o Regente Titular da Orquestra Sinfônica de Saint Louis. Enquanto conversavam, o Sr. Esaú, todo entusiasmado, revelou que seu filho estava regendo o Coral da Igreja Presbiteriana Independente Central do Brasil (IPICB). Foi, então, que surgiu o convite para o jovem Emilio De Cesar fazer o curso de Tanglewood, este que, anualmente, é promovido pela Orquestra Sinfônica de Boston, durante os meses de julho e agosto.
Sobre isso, Emilio De Cesar relata:
Emilio: Ao retornar ao Brasil, papai me disse: “Olha, o seu tio disse que é pra você ir fazer o curso de Tanglewood”. Eu não sabia nem o que era Tanglewood! Sinceramente, eu não sabia nem da importância disso. Só mais tarde, é que a gente vai descobrindo. Puxa vida! Eu fui fazer o curso de Tanglewood? [Risos]. Imagina, né ?! Sem falar inglês direito (...).
Na época da vigem, meu tio Eleazar estava no Brasil. Então, na realidade, acabamos fazendo juntos a viagem para os Estados Unidos [em 1965]. Ele, na primeira classe e eu, na turística [econômica], naturalmente. Ao chegarmos, eu desci do avião, fiquei olhando aquela gente toda e pensei: Ah, que novidade! É gente como a gente (...). Tá! Fui andando e, quando ia passando por um senhor enorme, muito forte, ele disse assim: “Good Morning! [Imitação gestual e vocal]. Quando ele falou isso, menino, eu caí na real. Pensei: Eu estou nos Estados Unidos mesmo! [Risos].
Em seguida, eu cheguei na alfândega, o policial pegou o meu passaporte e fez umas perguntas. E, claro, eu não entendi nada! Só respondi: “aham, aham (...)”. Então, eu ouvi uma voz vinda de trás dizendo assim: “Ele quer saber a cor dos seus olhos! ”. Respondi: Ah, é castanho, não sei, é preto! E fui tentando falar inglês (...). Demorei a notar que aquela voz era do meu tio Eleazar [risos]. Ele queria ver como eu iria me virar [risos]. Logo ele percebeu que eu não sabia falar inglês [risos]. Depois ele me disse: “Olha, você precisa estudar inglês, homem, aproveita pra estudar inglês (...).
Meu tio alugou um carro e nós fomos para Tanglewood. No caminho, dormimos em um lugar do qual não me lembro o nome e chegamos bem cedo em Tanglewood. Assim que chegamos, meu tio disse: “vamos conhecer o professor da disciplina que você vai cursar, do coral (...). E, também, você tem um teste pra fazer”.
O teste foi incrível! [Risos]. O camarada ia fazendo a avaliação [de nível] e eu não conseguia saber nem se o acorde era maior ou menor. Ele tocava e perguntava:
[Obs.: os diálogos são aproximados e traduzidos]:
- É maior ou menor?
- Menor.
- Não, senhor, é maior!
- E isso aqui, que tonalidade é essa?
- Tonalidade? [Risos].
Emílio: Menino, olha, foi um teste maravilhosamente horroroso! Aí, quando terminou a avaliação, o professor deu o veredicto:
- Bom, tudo bem, ele fica no coro “B”.
Tinha o coro “A” e o coro “B”. Ora, eu fui para fazer regência; portanto, eu tinha que estar no coro “A”. Mas, se vou para o coro “B”, obviamente não vou fazer regência, né?
Seguiu dizendo o professor:
- Olha, você vai estudar solfejo (...). Você vai fazer aulas com o professor de solfejo.
Então, todo dia, tal horário, eu ia fazer aula com um professor francês. A gente solfejava [Emilio faz os sons da escala]: ut, ré, mi, fá, sol, lá, si, ut. Porque o francês não canta dó, canta “ut”. [Emilio continua cantando o arpejo descendente]: Ut, sol, mi, ut. E assim ia, por aí afora! Menino, advinha qual foi a primeira música que nós cantamos no primeiro ensaio, no coro “B”? Missa em si menor de Bach. Quando eu olhei aquele negócio... [Risos], eu disse: meu Deus, eu não conheço nada. E eu que estava pensando que conhecia alguma coisa!
Othaniel: O que é que eu vim fazer aqui? [Risos]
Emilio: Justamente! Quando nós saímos do teste, meu tio Eleazar me disse assim:
- Bom, eu pensei que você soubesse mais. Mas já que você está aqui, aproveita e estuda.
- Sim senhor!
- Amanhã, estou indo para Saint Louis. Você quer ir comigo passear lá?
- Não, senhor! Eu vim aqui para estudar!
- Muito bem! Então tá bom. Você tem certeza de que não quer ir mesmo? [Risos].
- Não, não vou!
Aí ele sumiu! Na realidade, durante o Festival, a gente se encontrava de vez em quando.
Othaniel: Mas ele ficava sabendo o que estava acontecendo, né?
Emilio: Sim, ele sabia! A turma falava pra ele. Ele também perguntava. Ah, ele sabia! Ele ia tomando conta (...), né? Aí, menino, cada hora era uma música desse tipo. Era tudo complicado, difícil! E isso era no Coral “B”, hein?! [Risos]. O coral “A” tinha coisas muito mais complexas. E, de vez em quando, juntavam os dois coros.
Até que um dia, aparece uma música que eu já tinha visto aqui [Brasília, década de 1960], acho que no Madrigal de Brasília, não sei direito. Quando eu vejo aquela música, eu digo: Ah, minha chance! Naquele dia, após a programação do Festival, fui estudar piano no alojamento. Estudei muito! Durante esse tempo, algumas vezes o guarda chegava e me mandava dormir, justificando que já estava tarde. Eu fingia que não entendia o que ele estava falando: - Eu só falo português! E continuava estudando. Ele falava, falava, falava... mesmo assim, eu não saía do piano. Então, ele fechava a porta. Daí a pouco ele voltava e me mandava dormir de novo. E, nada! Lá pela terceira vez, ele me pegou pelo braço e bradou: “Você vai dormir! ” [Risos].
Enfim, estudei o máximo que eu pude estudar. Observei tudo que eu podia estudar daquela música. No dia seguinte, eu fui até o professor e disse:
- Olha, eu queria que o senhor me visse tocar. Eu viajei até aqui pra fazer regência, mas vim parar no coro “B”! Como é o que eu vou fazer? Como é que eu vou aprender alguma coisa desse jeito? Eu gostaria que o senhor pelo menos me visse reger. Se eu não servir pra nada, o senhor fala. Assim, eu já fico sabendo que eu não sirvo e pronto! Daí eu vou fazer outra coisa na vida.
Ele ficou me olhando, olhando, e depois começamos a conversar:
- Tudo bem!
- Eu queria reger essa música aqui para o senhor ver. Depois, o senhor me diz se eu tenho condição ou não tenho.
- Tá bom, então rege aí!
- Não, você esqueceu de “fazer piano” [dinâmica] aqui (etc. e tal).
Em seguida, fui fazendo a peça com ele. No final, ele falou assim:
- Olha, na hora do ensaio do coro, eu vou lhe chamar para reger o coro. Você topa?
- Ah sim, senhor, claro!
E foi o que aconteceu. No meio do ensaio, ele anunciou:
- Bom, vou chamar um colega de vocês aqui, o maestro Emilio. Ele vai reger a música tal.
Quando termina a música, o povo aplaude, né?! Aquele negócio de sempre. Aí ele vira e me revela sua decisão:
- Vou conversar com a Dona Lorna Cook deVaron [Norte americana, 1921-2018], que era a regente oficial do departamento de coral (...), pra ver se ela te dá uma oportunidade nas aulas de regência. Você tem muito jeito!
- Obrigado, professor, obrigado!
E ele realmente conversou com a Lorna Cook deVaron. Então, eles me deram uma outra peça. Só que, dessa vez, pra eu reger o coro todo: coros “A” e “B” juntos. Eu nem me lembro qual era a música. Mas, Menino, eu fiquei louco! Desesperado! Eu não conhecia aquela obra. Mesmo desesperado, fui estudar. Então, chegou o grande dia e fui reger. Quando terminou o ensaio, ela virou e perguntou:
- Ô, Emilio, você estudou com o maestro Eleazar?
Ela não falou a palavra tio, mas ela sabia que eu era sobrinho do maestro Eleazar de Carvalho. Segue o diálogo:
- Olha, eu não estudei com ele. Nunca estudei com ele. Agora, eu já o vi regendo muitas vezes no Rio de Janeiro e tal. Mas, estudar com ele eu nunca estudei!
- Não, é porque você tem os gestos muito parecidos com os gestos dele. Vamos te dar a oportunidade de você estudar, ficar como ouvinte na classe de Regência.
Aí eu fiquei inflado, né?! [Risos] Opa, beleza, né?! Já na classe de Regência, me deram uma música pra estudar. Acabei regendo outra vez o corão [“A” e “B” juntos]. Depois, teve um período de música contemporânea. A essa altura, tive que reger uma peça, acho que de Stravinsky. Era uma obra bastante complexa etc. Enfim, foi uma experiência fantástica de Tanglewood!!!
Além do que eu pude conhecer um repertório que eu nunca teria conhecido em Brasília, pois não tinha absolutamente nada por aqui! Para poder assistir a um concerto, [morando] em Brasília, você tinha que ir pra São Paulo ou Rio de Janeiro. Não tinha nada na cidade, a não ser, claro, as coisas que o Levino de Alcântara estava fazendo na década de 1960: Madrigal da Rádio Educadora (1963) - embrião do Madrigal de Brasília - e Escola de Música [EMB, oficializada em 1964]. Só mais tarde, ele [Levino] começou a fazer alguma coisa no campo orquestral [1965, com a Orquestra Sinfônica de Brasília - não confundir com a OSTNCS].
Mais ou menos nessa época, entre 1962 e 1965, quem também esteve em Brasília, foi o compositor Claudio Santoro. Ele foi um dos responsáveis pela criação do Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB). Ademais, ao lado de Levino de Alcântara, ele contribuiu para o surgimento da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, em 1979.
* Mas essa é uma outra história...
Maestro Emilio De Cesar, Kátia (filha) e Dona Leila (esposa)
PARA SABER MAIS SOBRE O MAESTRO ELEAZAR DE CARVALHO LEIA: