Filho de pais nordestinos, Emilio Cesar de Carvalho - mais conhecido como maestro Emilio De Cesar - nasceu no Rio de Janeiro, em 1947. Na então capital federal, o jovem Emilio, com 6 ou 7 anos, assistia com certa frequência, aos “Concertos para a Juventude” - um projeto desenvolvido pela Orquestra Sinfônica Brasileira (RJ). Ainda na década de 1950, Emilio, inspirado naqueles concertos sinfônicos regidos pelo seu tio, o prestigiado maestro Eleazar de Carvalho, começou os seus estudos musicais (iniciação musical, piano etc.).
Mais tarde, com cerca de 14 anos, Emilio De Cesar mudou-se para a recém-inaugurada cidade de Brasília. Isso ocorreu porque seu pai, o cearense Esaú de Carvalho, que era funcionário público federal e estava desempenhando as funções de jornalista e assessor de imprensa do Ministro da Educação e Cultura, aceitou, de forma voluntária, sua transferência para a nova Capital do Brasil, em 1960.
Foi em Brasília - no ano de 1963 - que Emilio De Cesar teve a oportunidade de, pela primeira vez, reger um coral. Tratava-se do coro da Igreja Presbiteriana Independente Central do Brasil (IPICB). De fato, Emilio, ainda adolescente, recebeu suas primeiras orientações sobre regência da própria mãe, Dona Marilisa Damaceno de Carvalho, uma alagoana que, além de atuar como pianista e organista, também regia o coro daquela instituição religiosa. A primeira parte dessa interessante história foi contada, com maiores detalhes, na coluna passada:
Segue, abaixo, mais um trecho de nossa conversa realizada pelo aplicativo Zoom, ainda no ano de 2020.
Othaniel Alcântara: E como foi a experiência de, pela primeira vez, reger um coral, o coro da Igreja Presbiteriana Independente Central do Brasil (IPICB)?
Emilio De Cesar: Eu costumo falar para as pessoas que eu não sei bem o que aconteceu naquele dia. Eu tremia tanto, mas eu tremia tanto... que eu só pensava assim: “Meu Deus do céu, vou cair! Não, eu não posso cair, eu tenho que ficar aqui! Não! Mas eu não vou aguentar... eu vou cair! Ai, meu Deus, esse negócio não acaba [Risos]. Eu vou cair! ”. Até que terminou a música, eu corri e sentei [expressão de cansado e risos]. Me pergunta: O que é que o coro cantou? Não sei! [Risos]. Até hoje eu não tenho a menor ideia!
Othaniel: Foi nessa época que o senhor começou a pensar em seguir carreira como maestro?
Emilio: Na realidade, minha decisão tem a ver, também, com um outro episódio. Foi quando eu trabalhei com o maestro Levino de Alcântara1 (1922-2014), também em Brasília. Esse foi outro motivo que acabou me levando a seguir com o estudo da música.
O maestro Levino de Alcântara era amigo do meu pai [Esaú de Carvalho] desde os tempos do Rio de Janeiro. Ele também era evangélico. Eles criaram a Associação Evangélica no Rio de Janeiro. Então, volta e meia eles faziam uns concertos - coral e orquestra - na escadaria da Câmara Municipal, ao lado do Theatro Municipal. Lá, eles juntavam diversos corais e uma pequena orquestra e, por vezes, o Levino regia mais de mil músicos nesses encontros.
Posteriormente, o maestro Levino esteve em outras regiões do Brasil, criando associações de corais evangélicos. Acho que ele passou por Minas Gerais e São Paulo. Depois, já no Estado de Goiás, atuou em Goiânia e Anápolis. Em Anápolis, ele criou uma Escola de Música. Aliás, minha esposa - Leila de Carvalho -, é anapolina e estudou piano nesta escola.
Após a transferência da capital federal, em 1960, o maestro Levino de Alcântara participou de um concurso público na Secretaria de Educação. Passou em primeiro lugar. Em seguida, ele foi chamado para dar aulas no CEMAB (Centro de Ensino Médio Ave Branca), em Taguatinga. No início dos anos 1960, ele dirigiu um concerto no Salão Vermelho do Hotel Nacional. Naquela ocasião, ele apresentou o Requiem do Padre José Maurício Nunes Garcia [Rio de Janeiro, 1767-1830], interpretado pelos alunos daquela instituição de ensino, bem como de alguns poucos músicos profissionais convidados, que ele conhecia de outras regiões do Brasil: Emanuel Coelho Maciel do violino/viola, Nivaldo da Flauta, Bem-Hur do violoncelo etc. Eu fui assistir a esse concerto junto com o papai. Como disse, o papai era amigo do Levino de Alcântara.
Também como já mencionei, meu pai trabalhava no Ministério da Educação e, à época, ele era diretor ou presidente da Rádio Educadora do Ministério da Educação e Cultura. Enfim, quando terminou o concerto, ele, entusiasmado, falou para o Levino: “você sabe que eu estou na Rádio Educadora de Brasília. Vamos fazer o coro da Rádio? Não tem muito dinheiro... A gente vê o que pode fazer, mas vamos começar?!” Então, o Levino topou a parada! Foi assim que nasceu [em 1963] o Madrigal daquela emissora de rádio. Este foi o embrião do atualmente conhecido “Madrigal de Brasília3”.
Na sequência, meu pai me colocou para trabalhar com o maestro Levino de Alcântara. Na verdade, quando pela primeira vez regi o coral da Igreja Presbiteriana, eu já estava no coral da Rádio do Ministério da Educação e Cultura. Lá, fui cantor e copista. E, trabalhando com o maestro Levino, eu achava que podia fazer alguma coisa para salvar o coral da Igreja [risos]. Assim, quando a mamãe resolveu acabar com o coro da Igreja, eu achei um horror! Aí eu disse: “Eu pego esse coro!” (Sobre a primeira experiência de Emilio como regente, leia: “
Emilio De Cesar: ‘como me tornei maestro’” [postado em 22/12/2020]).
Othaniel: Já se sentia um músico...
Emílio: Já era músico. Exatamente! [Risos]. Mas é aí que a coisa começa a ficar séria. Meu pai foi ficando entusiasmado. Então me colocou, junto com meu irmão [Valdo], para fazer um curso de férias, no mês de janeiro. E lá fui eu pra Jandira [São Paulo] estudar Regência com o João Wilson Faustini2 [n. 1931]. Era um curso de 4 semanas. Realmente, foi onde comecei a aprender a reger. Havia pessoas de vários lugares do Brasil. Eu regi uma música no final do curso. Meu irmão regeu uma outra. Lembro-me de que foi um curso puxado, mas muito legal! Foi uma experiência fantástica!
Othaniel: Voltando a falar sobre o coral patrocinado pelo Ministério da Educação, naquela época o rádio era o principal veículo de difusão da música. No Brasil dos anos 1960, praticamente não havia TV.
Emilio: Sim. Naquela época, a televisão praticamente não existia. O que existia mesmo era o rádio. No mundo inteiro, rádios tinham sua orquestra e seu coral. Eram corpos estáveis das rádios. Durante muito tempo, a Rádio do Ministério da Educação e Cultura no Rio de Janeiro, antiga capital federal, teve coro e orquestra.
Othaniel: Os músicos da Rádio Educadora eram amadores ou profissionais?
Emilio: O maestro Levino de Alcântara começou a ensaiar com uma porção de gente que não sabia nada de música. Ele começou fazendo aulas (teoria, solfejo etc.) e ensaiando as obras para serem apresentadas na Rádio. Era “ao vivo” mesmo. Os ensaios ocorriam diariamente, acho que na parte da tarde. E, todo sábado, a gente fazia um concerto para a Rádio. Era um concerto pequeno, de uns 20 ou 25 minutos.
Othaniel: E como foi trabalhar como copista?
Emilio: Naquele tempo, não tinha impressora, né?! Você tinha que ficar copiando as partituras, uma por uma. Depois que eu fazia uma cópia, o Levino de Alcântara dizia mais ou menos assim: “Não, meu filho, a nota é mais redondinha (...) Está muito quadradinha (...)! Não, o travessão (...)”. Enfim, aprendendo como se escrevia. E tinha o famoso “cachacinha”. Não sei se você já ouviu falar do cachacinha: era um mimeógrafo a álcool. Por isso, a gente o chamava de cachacinha.
Othaniel: Sim, eu conheço. No antigo Instituto de Artes - atual EMAC/UFG - tinha uma salinha lá do mimeógrafo, perto da sala do meu professor de violino, professor Costinha. Tinha um cheiro forte!
Emílio: Pois é! Esse era uma bênção, porque eu fazia uma cópia. Depois tirava umas cinco ou seis. O que você tinha escrito também acabava. Aí tinha que escrever tudo de novo. E, assim, ia...
O maestro Emilio De Cesar foi Regente Titular do
Madrigal de Brasília, de 1986 a 1999.
Antes, havia sido Regente Assistente do maestro Levino de Alcântara, entre 1968 e 1981. |
Othaniel: E o maestro Eleazar de Carvalho, como ele entra nessa história?
Emílio: Acho que foi no início de 1965. Meu pai, que era o diretor da Rádio Educadora de Brasília, acabou sendo convidado a visitar várias emissoras de rádio nos Estados Unidos. Eram rádios que faziam um trabalho educacional. Não me lembro se o convite partiu do governo norte-americano ou do brasileiro. Eu sei que ele foi para os Estados Unidos com o objetivo de ver o que eles estavam fazendo por lá, em termos de programação na área da Educação. Então, ele aproveitou a oportunidade para visitar o meu tio Eleazar de Carvalho que, desde 1963, era o Regente Titular da Orquestra Sinfônica de Saint Louis.
Enquanto conversavam, meu pai, todo entusiasmado, disse a ele que eu estava estudando música e que eu também estava regendo o coro da Igreja. Aí, o Eleazar virou para o meu pai e falou assim: “Ah, chama ele pra fazer o curso de Tanglewood!” Como disse antes, esse curso acontecia nos meses de julho e agosto e era organizado pela Orquestra Sinfônica de Boston. Tanglewood fica em Lenox, no Estado de Massachusetts. E o Eleazar ministrava aulas no curso de Regência de Orquestra em Tanglewood (...).
Ao retornar ao Brasil, papai me disse: “Olha, o seu tio disse que é pra você ir fazer o curso de Tanglewood”. Eu não sabia nem o que que era Tanglewood. Sinceramente, eu não sabia nem da importância disso. Só depois, mais tarde, é que a gente vai descobrindo. Puxa vida! Eu fui fazer o curso de Tanglewood? [Risos]. Imagina, né?!
* Na próxima coluna: a experiência do jovem Emilio De Cesar em Tanglewood, Estados Unidos.
NOTAS:
1)
Levino de Alcântara nasceu em Recife, Estado do Pernambuco, em 1922. Estudou na Escola de Música do Brasil e no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Teve a oportunidade de estudar com o carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Chegou a Brasília nos anos 1960. Além de criar o Madrigal de Brasília (citado na entrevista), o maestro Levino fundou, também, a Escola de Música de Brasília (EMB), em 1974. Certa vez, em uma entrevista concedida a um jornal brasiliense, Levino relembrou: “O Madrigal, inicialmente, contava com 18 vozes. Até 1972, era ligado à Radio Educadora do Ministério da Educação e Cultura. Dez anos depois, passou para o âmbito da EMB”. Aposentou-se em 1985 e foi morar em uma pequena fazenda no Pará. Em Conceição do Araguaia, criou uma escola de música voltada para o atendimento de jovens carentes. Morreu em 2014, vitimado por câncer, aos 91 anos.
2) Perfil de
João Wilson Faustini (
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3) O maestro Emilio De Cesar foi Regente Titular do
"Madrigal de Brasília, entre os anos de 1986 e 1999. Antes, naquele corpo artístico, havia sido Regente Assistente de Levino de Alcântara, de 1968 a 1981.
Nas palavras do pesquisador Alfredo Ericeira, "o Madrigal de Brasília, coro profissional e vinculado à Escola de Música de Brasília [EMB], é o coral mais antido e em atividade ininterrupta da capital federal". Sobre o Madrigal de Brasília, o "Jornal de Brasília" publicou uma matéria no dia 29/10/2013 (link): "Surgiu em 1963, através da iniciativa do Maestro Levino Ferreira de Alcântara, que reuniu um grupo de cantores recém-chegados à nova capital. Em todos esses anos de existência, o Madrigal de Brasília percorreu uma trajetória pontilhada de sucessos no cenário da música erudita e de câmara. Alcançou um nível técnico que o destaca como um dos melhores do Brasil (...)".
PARA SABER MAIS SOBRE O MAESTRO ELEAZAR DE CARVALHO LEIA: