A Orquestra Sinfônica Brasileira foi fundada em 1940, pelo músico paraibano José de Lima Siqueira (1907-1985). Teve como seu primeiro Regente Titular o húngaro naturalizado brasileiro Eugen Szenkar (1891-1977). Na chamada “Era Szenkar” (1940 a 1948), aquele corpo artístico estabelecido na Cidade do Rio de Janeiro contou com a atuação de alguns regentes assistentes, entre eles o já citado José Siqueira e o jovem cearense Eleazar de Carvalho (1912-1996).
Eleazar de Carvalho é tio do também maestro Emilio Cesar de Carvalho (n. 1947). Emilio De Cesar - como é mais conhecido - regeu, em diferentes períodos, as duas orquestras profissionais sediadas na Capital do Estado de Goiás: a Orquestra Sinfônica de Goiânia e a Orquestra Filarmônica de Goiás. Em uma longa entrevista realizada por meio do aplicativo Zoom em três dias diferentes, no mês de agosto de 2020, Emilio De Cesar falou bastante a respeito de seu tio Eleazar de Carvalho. Trechos da referida conversa serão grafados na sequência dessa coluna.
O presente texto aborda, inicialmente, o ano de 1946, quando Eleazar de Carvalho partiu com a cara e a coragem para os Estados Unidos. Na terra do Tio Sam, conseguiu uma audiência com o maestro russo Serge Koussevitzky1 (1874-1951), então Regente Titular da Orquestra Sinfônica de Boston2. O mencionado encontro aconteceu, mais precisamente, na edição daquele ano do prestigiado Festival de Tanglewood3, realizado no Berkshine Music Center.
Após o referido episódio, Eleazar de Carvalho tonou-se aluno de Koussevitzky. Além disso, passou a atuar como um dos auxiliares do maestro russo nas edições seguintes do Festival de Tanglewood. Naquele importante festival, ministrou4 aulas de regência para alguns jovens talentosos, tais como: Claudio Abbado, Zubin Mehta e Seiji Ozawa. É relevante pontuar que, após a morte de Koussevitzky (1951), Eleazar assumiu a direção do Berkshine Music Center.
Contudo, o fato mais importante ocorrido com Eleazar de Carvalho nos Estados Unidos, foi ele ter sido escolhido - por Koussevitzky - para ser um dos regentes assistentes na Orquestra Sinfônica de Boston, função que exerceu ao lado do norte-americano Leonard Bernstein5 (1918-1990).
Da esquerda para a direita:
Eleazar de Carvalho (1912-1996)
Serge Koussevitzky (1874-1951)
Leonard Bernstein (1918-1990)
Registro fotográfico: Babbitt, Howard S., Jr. (c.1947)
Fonte:
Site da Orquestra Sinfônica de Boston
Foi na condição de Regente Assistente da Sinfônica de Boston que o maestro brasileiro passou a ser frequentemente convidado para dirigir importantes orquestras pelo mundo. Nesse sentido, Sérgio Nepomuceno Alvim Corrêa (2004, p. 139) cita as Filarmônicas de Berlim, Viena, Londres e Israel, além das cinco grandes orquestras americanas (Big Five): Boston, Cleveland, Philadelphia, Chicago e Nova York.
Para Emilio De Cesar (2020, entrevista), além dos Estados Unidos, Europa (Alemanha, Áustria, Inglaterra, Bélgica etc., seu tio regeu orquestras também em diversos países da América Central, da América do Sul etc., e outras tantas em “tudo quanto é lugar no Brasil”.
Durante a anunciada entrevista, Emílio De Cesar deu ênfase à passagem de Eleazar de Carvalho pela Bélgica. Naquela oportunidade, o maestro brasileiro havia embarcado rumo a Bruxelas, substituindo seu mestre Koussevitzky, então adoentado. Eleazar estava muito ansioso, pois “ele imagina que a turma vai achar horrível, porque eles querem o Koussevitzky”. Mas, no final, “a turma ficou muito empolgada. E você acha que chamavam ele de regente brasileiro? Não! Regente belga! O nosso regente belga (...). É assim que eles falavam (...). Só pra você ver a que ponto ele foi chegando”.
Emilio De Cesar também chamou a atenção para o fato de que foi na Bélgica que Eleazar de Carvalho conheceu a Jeunesses Musicales Internacional6 (A Juventude Musical Internacional). Entusiasmado com o que viu naquele país e com o apoio da Orquestra Sinfônica Brasileira, o maestro cearense fundou, em 1952, a Juventude Musical Brasileira7 (JMB).
Uma decepção em Boston
Em 1949, o maestro russo Serge Koussevitzky foi sucedido, na Orquestra Sinfônica de Boston, pelo francês Charles Munch (1891-1968). Anos depois, em 1962, com a saída de Munch e pelo fato de seu colega Leonard Bernstein estar comandando a Filarmônica de Nova York (desde 1957), o brasileiro Eleazar de Carvalho alimentou a esperança de assumir a regência titular daquela importante orquestra pertencente ao grupo Big Five das orquestras americanas. Nas palavras do meu entrevistado Emilio De Cesar,
“Ele achava que realmente iria conseguir por causa de todo o apoio que ele tinha de várias pessoas. E o próprio Koussevitzky gostava muito dele. Realmente, por causa do Koussevitzky ele regia no mundo inteiro (...). A orquestra [corpo de instrumentistas] também gostava muito do Eleazar. E muitos da diretoria queriam que o Eleazar fosse o regente da Orquestra Sinfônica de Boston. Existiu uma reunião da Sinfônica e eles [da diretoria] decidiram procurar uma outra pessoa”.
Emilio De Cesar seguiu dizendo que um de seus amigos, que era da diretoria da orquestra, foi conversar com Eleazar de Carvalho, na casa do brasileiro. Segue, abaixo, uma reconstituição (aproximada) desse diálogo, feita por Emilio De Cesar:
- Eleazar, esquece a Sinfônica de Boston.
- Mas por quê? O que aconteceu?
- Eleazar, o problema é que a diretoria quer um regente que seja alemão ou francês; e você é sul-americano, você é brasileiro.
Ao ouvir seu colega, “Eleazar ficou fula de ódio”, disse Emilio de Cesar.
E mais uma vez, se utilizando de falas aproximadas, reproduziu as seguintes palavras de seu tio:
“Pois eu sou brasileiro e não vou mudar nunca! As pessoas vão me conhecer como brasileiro. Eu sou brasileiro e vou continuar brasileiro, nunca vou me naturalizar americano. Eu sou brasileiro! (...)”.
O sucesso na Orquestra Sinfônica de Saint Louis
Conforme o depoimento de Emilio de Cesar, o tio Eleazar já havia recebido um convite para ser o Regente Titular da Orquestra Sinfônica de Saint Louis, uma cidade localizada no estado norte-americano do Missouri, próximo à divisa com o estado de Illinois. Mas ele teria preferido aguardar o desfecho da situação acima relatada, pois queria ficar em Boston. Então, chateado com a diretoria da Orquestra Sinfônica de Boston, decidiu, em 1963, aceitar o desafio em Saint Louis.
Por que “desafio”? Segundo Emilio de Cesar, a “Sinfônica de St. Louis era, naquela época, a octogésima [80ª] orquestra do ranking americano”. E prosseguiu dizendo:
“Pois o Eleazar pega o carro, vai embora (...). Assume a Orquestra de St. Louis8 e, em pouco tempo, ele coloca essa orquestra como uma das melhores dos Estados Unidos (...). Este é o Eleazar de Carvalho”.
Por fim, Emilio de Cesar afirma:
“Hoje, muitos regentes brasileiros têm regido no exterior. Mas quem abriu esse espaço realmente foi o Eleazar”.
Finalizando, cabe lembrar que nas três postagens anteriores ficaram registrados alguns dados referentes às trajetórias pessoal e profissional de Eleazar de Carvalho no Brasil, desde o início de seus estudos musicais, aos 11 anos de idade, no Ceará, passando pela sua graduação na Escola Nacional de Música (Rio de Janeiro), até a sua decisão de seguir seus estudos nos Estados Unidos, a partir de 1946.
Para mais detalhes sobre o período sintetizado no parágrafo acima, leia:
* Em breve será publicado o conteúdo da aludida conversa pelo Zoom, desta vez referente à carreira do meu entrevistado, sob o título: Emilio De Cesar: “como me tornei maestro”.
Emilio De Cesar (n. 1947)
NOTAS:
1) Serge Aleksandrovich Koussevitzky (1874-1951) era maestro, compositor e baixista russo. Regeu a Orquestra Sinfônica de Boston de 1924 até 1959.
2) A Sinfônica de Boston foi fundada em 1881. Até a Primeira Guerra Mundial, todos os seus diretores musicais foram alemães. Os dois diretores seguintes foram franceses: Henri Rabaud e Pierre Monteaux, de 1919 a 1924. Monteaux, graças a uma greve de músicos, substituiu 30 instrumentistas, fazendo com que a orquestra mudasse seu estilo musical. Assim, tal Orquestra desenvolveu uma reputação de ter um som “francês”, o que, de certa forma, persiste até hoje.
3) Tanglewood é uma propriedade rural localizada entre as cidades de Lenox e Stockbridge, no Estado de Massachusetts. Lá, no Berkshine Music Center, acontece o prestigiado festival organizado pela Orquestra Sinfônica de Boston. Nas palavras de Emilio De Cesar, o Festival de Tanglewood - realizado nos meses de julho e agosto - é um dos melhores cursos de verão dos Estados Unidos, “se não for o melhor (...). Na época, era assim: o suprassumo”. O Festival de Campos do Jordão (SP), criado pelo maestro Eleazar de Carvalho, foi inspirado no Festival de Tanglewood.
4) O articulista Leonardo Martinelli (Revista Concerto, março de 2012), afirma que desde a sua primeira experiência como professor nos Estados Unidos, o maestro brasileiro “ocupou cargos de docência em regência em importantes instituições daquele país, tais como Hostra [sic] College, a Yale University e a prestigiada Juilliard School, de Nova York”.
5) Leonard Bernstein (1918-1990), embora nascido na cidade de Lawrence, no estado de Massachusetts, era filho de pais emigrantes judeus ucranianos. Em 1935, foi admitido no curso de Música da Universidade de Harvard, graduando-se em 1939. Participou do Festival de Tanglewood em 1940, na classe do maestro russo Serge Koussevitzky. Foi Regente Assistente de Koussevitzky na Orquestra Sinfônica de Boston. Em 1945, foi nomeado diretor da Sinfônica da Cidade de Nova York. Em 1957, foi nomeado diretor da prestigiada Orquestra Filarmônica de Nova York.
6) A Jeunesses Musicales Internacional (JMI) foi criada na Bélgica, em 1940, pelo musicólogo belga Marcel Cuvellier.
7) Eleazar de Carvalho fundou, em 1952, a Juventude Musical Brasileira (JMB), entidade (sociedade civil) que foi a representação da
JMI no Brasil. O pesquisador Fernando Menon (2008) explicita que o principal objetivo da JMB era “afastar o pensamento dos jovens da guerra e cooperar para a integração entre os diferentes povos através da música” Mais detalhes:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=119607
8) A St. Louis Symphony Orchestra foi fundada em 1880. É a segunda mais antiga dos Estados Unidos, precedida apenas pela Filarmônica de Nova York. Eleazar de Carvalho consta da lista de regentes titulares, de 1963 a 1968.