No último mês de agosto (2020), tive uma longa conversa com o maestro Emilio De Cesar (n. 1947), por meio do aplicativo Zoom. Na verdade, foram três sessões realizadas em dias diferentes. No primeiro desses encontros virtuais, Emilio De Cesar falou bastante a respeito de seu tio Eleazar de Carvalho (1912-1996), um ícone da regência brasileira.
É indiscutível a importância de Eleazar de Carvalho para a música sinfônica brasileira. Assim sendo, inicialmente, vale a pena registrar a opinião de Henrique Autran Dourado, músico que atuou como contrabaixista na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), sob a batuta do referido Maestro. De acordo com esse professor e pesquisador, “A história das orquestras no Brasil terá dois grandes volumes: antes e depois de Eleazar”. (Matéria de Leonardo Martinelli para a Revista Concerto, março de 2012).
A família
Eleazar de Carvalho nasceu na cidade de Iguatu, interior do Estado do Ceará, em 28 de junho de 1912. Anos depois, juntamente com seus pais - Manuel Afonso de Carvalho (Capitão do Exército) e Dalila Mendonça - passou a residir na capital do estado, Fortaleza.
Eleazar de Carvalho (1912-1996) e Emilio De Cesar (nascido em 1947) tiveram uma convivência próxima em vários períodos diferentes, a partir da década de 1950 e, naturalmente, em tais períodos, o tio confidenciou muitas histórias ao sobrinho.
Uma delas diz respeito ao temperamento difícil do pequeno Eleazar, o que teria levado seu rigoroso pai, o Capitão Afonso a, utilizando-se de seus bons contatos, conseguir uma vaga na Marinha1 para seu “inquieto” filho, à época, uma criança de 11 anos. Certamente, não há como saber maiores detalhes acerca desse episódio, mas sabe-se que, de fato, Eleazar de Carvalho acabou fazendo carreira militar na Marinha do Brasil.
Os primeiros passos na música
Durante a aludida entrevista, Emilio De Cesar relatou que seu tio Eleazar de Carvalho teria manifestado, ainda criança, o desejo de estudar música. Nas palavras de Emilio,
“Meu avô, o Capitão Afonso, era muito bravo.
Ele não queria que o Eleazar estudasse música de jeito nenhum.
Música, naquela época, era considerada coisa de vagabundo”.
Ainda segundo o maestro Emilio, seu tio Eleazar insistia incansavelmente na ideia de estudar música. Para Emilio, utilizando-se de falas aproximadas, o Capitão Afonso teria dito:
“Você está doido? Não senhor, não vai! Você tem que aprender um ofício”.
E logo pensaria em um castigo: “Você vai é para a Marinha1”.
Emilio De Cesar acrescenta que, ao ingressar na Marinha, o jovem Eleazar - então com 11 anos - teria sido questionado pelo comandante se, por ventura, ele sabia datilografar. Na realidade, por ser amigo do Capitão Afonso, o comandante pretendia colocar seu protegido trabalhando no escritório, setor mais próximo a ele. Segue, abaixo, uma reconstituição (aproximada) da sequência do diálogo entre o comandante e o estudante, feita pelo maestro Emilio (em entrevista), a partir dos relatos do próprio Eleazar:
- Não, não, não! Eu quero ir para a Banda!
- Uai, mas, para a Banda? Você toca algum instrumento?
- Toco! (Na entrevista, Emilio De Cesar, sorrindo, disse: “tocava nada!”).
- Qual instrumento?
- É... Vamos lá que eu te mostro!
Continuando com o depoimento de Emilio De Cesar, ao entrarem na sala de ensaios da Banda, seu tio
“olhou para aquele instrumento maior e disse: ‘Aquele!’ Então, ele [o comandante] chamou o mestre da banda e disse: ‘Olha, este rapaz vai ficar na Banda. Ensina ele a tocar isso (tuba). Ele vai ser da Banda’”.
O articulista Leonardo Martinelli, ao falar sobre esta história na mencionada matéria da Revista Concerto (03/2012), cita um “elemento” novo. Para Martinelli, nas últimas entrevistas que concedeu em vida, Eleazar de Carvalho teria dito que, “uma vez na instituição militar, percebeu que os músicos da banda obtinham refeições melhores e mais generosas”. Tal fato teria contribuído para a sua decisão de se dedicar à música. Seja como for, foi na Banda do Batalhão Naval que aquela criança de 11 anos começou a estudar tuba.
De Fortaleza para o Rio de Janeiro
Em 1928, almejando aperfeiçoar seus conhecimentos musicais, Eleazar de Carvalho conseguiu uma transferência para a cidade do Rio de Janeiro, na época, a Capital da República. Na “Cidade Maravilhosa”, preliminarmente, atuou como tubista na Banda do Batalhão Naval (ou Banda dos Fuzileiros Navais).
Pouco tempo depois, ingressou-se na “Escola Nacional de Música2”, instituição onde estudou composição com Paulo Silva (1892-1967) e regência com Francisco Mignone (1897-1986). Sua primeira diplomação ocorreu em 1934.
Sabe-se que nos anos seguintes, pelo menos duas de suas obras foram apresentadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ): as óperas O descobrimento do Brasil (1939) e Tiradentes (1941). Como se pode observar pelos títulos, suas criações mostravam uma forte linguagem nacionalista.
Novos “ares”
Em fins dos anos 1930, Eleazar decidiu deixar a Marinha. Trabalhou em vários lugares para sobreviver. Contudo, ao que parece, suas principais atividades foi a de regente da Orquestra e Coro do “Cassino da Urca”, além de ser músico na Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
É importante mencionar que, neste período, seu irmão Esaú Afonso de Carvalho (pai de Emilio De Cesar) já havia se transferido de Fortaleza para o Rio de Janeiro. E, mesmo tendo formação na área de jornalismo, Esaú trabalhou com Eleazar, por exemplo, na Orquestra do Cassino da Urca. Dentre suas atividades constam a de fazer as cópias (manuais) dos arranjos (feitos por Eleazar), ou seja, uma cópia para cada estante de músicos, a de distribuir e recolher as partes musicais - antes e depois dos ensaios -, além de elaborar os programas de concertos. Cumpre esclarecer que, em período anterior à proibição de cassinos no Brasil, ocorrida em fins de 1945, o Cassino da Urca era um lugar muito frequentado pela elite carioca.
O tocador de tuba Eleazar de Carvalho e sua amizade com Igor Stravinsky (1882-1971)
Em certo momento da referida entrevista, perguntei a Emilio se o seu tio Eleazar ficou bom na tuba. A resposta foi afirmativa:
“Ficou. Tocou na Orquestra, inclusive. Tem um episódio dele tocando Sagração da Primavera com a Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que Stravinsky regeu a Sagração da Primavera, depois do episódio de 1913 (...). Quando ele [Stravinsky] desceu do pódio, agradeceu o público... E quando vinha andando, o Eleazar meteu o pezinho dele na frente [risos] e o Stravinsky, - o Stravinsky! - esbarrou no pé do Eleazar e quase caiu [risos]. Este tirou o pé rapidinho! ”
Para completar a história acima, torna-se necessário, por um momento, interromper a cronologia dos dados biográficos ora apresentados. Continuando com o depoimento do maestro Emilio De Cesar, muitos anos se passaram e os dois construíram uma sólida amizade. Certa vez, Eleazar trouxe à tona aquele episódio. E, em mais uma reconstituição aproximada de diálogos:
- Você se lembra do Rio de Janeiro, quando você regeu a Sagração?
- Ah, lembro. Claro!
- Você quase caiu, né?
- É. Eu tropecei e quase caí.
- Tropeçou nada! Eu que coloquei o pezinho lá e você...” [Risos].
- Ah, Eleazar, como é que você faz um negócio desse? Quase que eu caio no chão!
Sobre esse encontro, conforme atesta o maestro Emilio De Cesar, “eles ficaram na brincadeira. Quer dizer... coisa de jovem!” De fato, segundo meu entrevistado, Stravinsky gostava muito do Eleazar de Carvalho e dizia sempre que ele era um dos melhores intérpretes de sua obra. Ele acrescentou, ainda: “acabou sendo um dos grandes intérpretes da Sagração da Primavera, por incrível que pareça!”
Mas, voltando a falar da tuba do Eleazar de Carvalho, parece que esta foi deixada de lado para ele se dedicar mais à regência, de início, no Rio de Janeiro.
A primeira experiência de Eleazar de Carvalho na Orquestra Sinfônica Brasileira
Em 1940, Eleazar tornou-se Regente Assistente da recém-criada Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), no Rio de Janeiro. Neste período, teve aulas de regência com o maestro titular da OSB, o músico húngaro, naturalizado brasileiro: Eugen Szenkar (1891-1977).
1946: a reviravolta na vida de Eleazar de Carvalho
Em 1945, os pais de Emilio De Cesar (n. 1947) - o cearense Esaú Afonso de Carvalho e a alagoana Marilisa Damasceno de Carvalho - contraíram matrimônio na cidade do Rio de Janeiro. A essa altura, seu pai, além de assessorar Eleazar de Carvalho, já estava trabalhando na área de jornalismo (sua formação original) - no Ministério da Educação e Cultura. Tudo parecia caminhar bem. Entretanto, por meio de um Decreto-Lei datado de 30/04/1946, o Presidente da República - Sr. Eurico Gaspar Dutra - proibiu o funcionamento dos cassinos no Brasil.
Emilio De Cesar considera que o emprego no Cassino da Urca era bastante rentável, tanto para o tio Eleazar quanto para o seu pai, Esaú. Ao que parece, essa atividade “dava mais dinheiro que o Ministério da Educação e Cultura”. Para o maestro Emilio, com o fechamento daquele estabelecimento “papai sofreu muito porque, apesar de ele receber uma quantia de dinheiro lá, uma indenização... Ficou numa situação [financeira] complicadíssima!”
Em concordância com a narrativa do maestro Emilio De Cesar, Eleazar de Carvalho pegou a indenização a que tinha direito no Cassino da Urca e comunicou ao irmão e aos amigos:
“Eu vou viajar, eu vou viajar e vou ganhar o mundo!
Se eu não conseguir isso, vocês nunca mais vão ouvir falar de mim”.
E ele acaba conseguindo mesmo. Chegou em 1946 aos Estados Unidos. Lá, estudou com Sergey Koussevitzky (1874-1951). Regeu algumas das maiores orquestras do mundo para, só depois, em 1973, retornar consagrado ao Brasil. Mas, para não deixar o texto muito longo, essa história ficará para a próxima coluna.
Leia também: O início da carreira internacional de Eleazar de Carvalho (20/10/2020)
Maestro Emilio De Cesar
NOTAS:
1) É provável que o maestro Emilio De Cesar esteja falando da Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará, fundada em 1864 e instalada em 1865. De acordo com o site da Instituição, a formação do Aprendiz-Marinheiro compreendia o curso primário e os elementos profissionais estritamente necessários ao desempenho do serviço de bordo. (Mais detalhes em:
https://www.marinha.mil.br/eamce/node/23).
2) O Instituto Nacional de Música (INM) do Rio de Janeiro foi fundado em 1848. Todavia, seu primeiro nome é “Conservatório de Música”. Na realidade, foi a partir da Proclamação da República, em 1889, que passou a se chamar INM. Seu primeiro diretor foi o compositor Leopoldo Miguéz (1850-1902). Logo na sequência, a instituição foi dirigida por outros importantes nomes, tais como Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Henrique Oswald (1852-1931). Na década de 1920, durante a gestão de Luciano Gallet (1893-1931), o INM foi anexado à Universidade do Rio de Janeiro, a qual, em 1937, passou a se chamar Universidade do Brasil. Naquele mesmo ano, o INM teve seu nome alterado para Escola Nacional de Música. Por fim, em 1965, a Universidade do Brasil passou a ser designada Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Escola Nacional de Música, recebeu o nome de Escola de Música. (Para mais detalhes:
http://musica.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=45&Itemid=64).