Guardadas as devidas proporções, um “modo” musical seria o equivalente às escalas musicais dos tempos atuais. Obviamente, essa analogia se resume ao fato de que uma melodia grega, em determinado momento histórico, costumava ser composta a partir da escolha de um “modo” musical estabelecido. Assim, em uma comparação bem primária, se no sistema tonal encontramos as diversas tonalidades, os gregos antigos possuíam os diferentes “modos”.
Contextualizando, costuma-se dizer que na Grécia - de onde o Ocidente herdou sua cultura musical - bem como entre os mesopotâmicos, os egípcios, os hindus, os chineses etc., a música era considerada uma criação divina. Os Gregos antigos, em particular, imputavam ao deus Apolo a sua invenção. Além disso, consideravam como os primeiros intérpretes da música os semideuses Anfião e Orfeu, este que é considerado filho de Apolo (Candé, 2001, pp. 51 e 62; Grout; Palisca, 2001, p. 17).
Antes de mais nada, é preciso registrar que o termo grego mousiké (pronuncia-se mussikê) do qual deriva a palavra portuguesa “música”, tinha um sentido mais amplo do que aquele que hoje lhe damos (Grout; Palisca, 2001, p. 19). Na realidade, seu significado original era: “Arte das Musas*”. Segundo o professor de língua e literatura gregas Daniel Lopes (USP), na Grécia antiga, o vocábulo mousiké não abarcava apenas os elementos puramente musicais (melodias, ritmos, modos etc.), mas também o que denominamos de “poesia” (Lopes, apud Reinach, 2011, orelha do livro). E na interpretação da musicóloga Lia Tomás, estudar música “consistia também em estudar a poesia, a dança e a ginástica” (Tomás, 2005, p. 13).
Nessa trilha, de acordo com a mitologia grega, os primeiros poetas-músicos elaboravam suas composições sob a inspiração das Musas*, as protetoras da educação. Para Daniel Lopes (ibidem), esse tipo de artista tinha o estatuto de “sábio e divino”: “sábio, porque era porta-voz de um conhecimento conservado oralmente de geração para geração” e divino “justamente porque era o ente intermediário entre o canto [com acompanhamento de lira] das divindades e os homens”
Retornando às palavras de Lia Tomás, nas diversas narrativas mitológicas, “as variadas funções e significados da música na sociedade grega” estão associadas a personagens, tais como: Orfeu, Dionísio e Apolo (Tomás, 2005, p. 14). O semideus Orfeu é considerado, então, por muitos autores, como o primeiro desses sacerdotes-cantores da época pré-homérica (anterior ao século XII a. C.).
É importante destacar um consenso entre os historiadores: foi no período Pré-Homérico que se originou e se desenvolveu a civilização grega. Em resumo, diz-se que entre 2000 e 1200 a. C. (aproximadamente), houve uma miscigenação de diferentes povos da Antiguidade, principalmente na Ilha de Creta e Península Balcânica. Quatro desses povos, além dos cretenses, são considerados os primeiros gregos. São eles: os aqueus, os jônios, os eólios e os dórios.
Os dórios, considerados os mais “violentos”, teriam sido os últimos a chegar naquela região, ao que tudo indica, no decorrer do século XIV antes de Cristo. E, a posteriori (século XII), causariam a primeira diáspora grega, expulsando a população da Grécia Continental (jônios, aqueus, eólios etc.), sobretudo para ilhas do Egeu e para a costa da Ásia Menor. A título de curiosidade, séculos mais tarde, os dóricos e os jônicos seriam representados, respectivamente, pelas cidades-Estado (pólis) de Esparta e Atenas.
Particularmente em relação à prática musical dos gregos do período Pré-Homérico, essa é, obviamente, resultante de meras especulações, principalmente por se tratar de uma época anterior à invenção da escrita. Logo, devido à pequena quantidade de fontes documentais, não há a possibilidade de se esmiuçar o processo de execução musical das melodias tradicionais das primeiras gerações dos povos helênicos. Apesar disso, ao que parece, a música grega, bem como a de outros povos da Antiguidade já se mostrava organizada de forma consciente no referido período.
Nesse diapasão, o poeta e musicólogo Mário de Andrade (1893-1945) assinala que na base da música grega estava o tetracorde, considerado o mais elementar “sistema”. Posteriormente, os gregos passaram a reunir dois tetracordes consecutivos, ou seja, oito sons (Andrade, 1980, pp. 24-26). Dois tetracordes “constitui uma escala, ou, como eles [gregos] dizem, um ‘sistema’” (Reinach, 2001, p. 37). A tais sistemas chamaram de “modos” (Andrade, p. 27).
Além disso, Antoine Fabre d’Olivet (1767-1835) discorre que a contribuição do semideus Orfeu para a música grega foi justamente a sistematização do uso de diversos tipos de melodias tradicionais de diferentes povos que habitavam aquela parte do planeta. Para esse autor, surgira, já neste momento, a denominação “Modos” (Fabre d’Olivet, 2004, p. 93). Mas, Orfeu realmente existiu? Ou teria sido apenas uma criação da mitologia grega?
Seja como for, Fabre d’Olivet registra que Orfeu era originário da Trácia, região que atualmente compreende parte da Turquia, da Grécia e da Bulgária. Ainda jovem, teria sido “instruído pelos egípcios, em seus mistérios mais secretos”. Ademais, em seguida, Orfeu se estabeleceu na Grécia Continental (Península Balcânica), local onde receberia o título de profeta e sacerdote-cantor (Fabre d’Olivet, 2004, p. 93).
Já mencionando a contribuição de Théodore Reinach (1860-1928) em relação a esse tema, ele afirma que as primeiras formas lítero-musicais, os “hinos”, composições endereçadas às deusas e deuses gregos datam do período da suposta atuação de Orfeu (Reinach, 2001, p. 26). Ainda segundo Fabre d’Olivet, foi o próprio Orfeu “quem criou a maravilhosa mitologia grega”.
Aqui, é imprescindível enfatizar que, por vezes, a historiografia musical considera Orfeu como sendo o primeiro dos
aedos (poetas-músicos), isto é, um tipo de artista itinerante, cujo trabalho consistia em, de forma educativa, manter a tradição grega. Não se tratava apenas de composições (orais) de temática religiosa (mitológica), mas também de obras de caráter épico (façanhas de heróis). Estamos falando de uma época - anterior ao advento da escrita -, na qual as tribos gregas eram governadas por uma heroica classe guerreira, quando cabia justamente a esses poetas-músicos, acompanhados pela lira, a legitimação das glórias dessa aristocracia.
Em seu livro Música apresentada como ciência e arte, Fabre d’Olivet (1767-1835) argumenta que Orfeu teria reunido, inicialmente, em seu sistema musical, três “modos”: o LÍDIO e o FRÍGIO, ambas de origem asiática; e o DÓRIO, proveniente da última tribo indo-europeia a invadir a Península Grega. Mais adiante, seriam admitidos mais dois modos: o JÔNIO e o EÓLIO. Estes eram provenientes de duas daquelas quatro tribos indo-europeias que formaram a civilização helênica. Vale ressaltar que a quantidade desses modos seria aumentada em tempos subsequentes.
Percebe-se, portanto, que a arte musical da Grécia Antiga era, de fato, um amálgama de culturas de proveniências diversas: algumas “fornecidas pelas variadas raças de que se compunha a nação helênica” e outras cedidas “pelos povos asiáticos [a maior parte oriunda da atual Turquia] que entraram na órbita de sua cultura”. Esse caráter sintético da arte grega reflete-se no sistema dos “modos” musicais (Reinach, 2001, p. 50).
Quais as características desses “modos”? Isso é o que veremos na próxima coluna.
* Em Teogonia, Hesíodo (século VIII a. C.) apresenta, de forma cronológica, todas as gerações de deuses (as) da Antiga Grécia. É nesse ambiente que se encontrava o deus Apolo e as Musas, estas relacionadas com o fazer poético, consideradas as inspiradoras dos aedos, desde os tempos mais remotos. Mas quem eram as Musas? As nove filhas de Mnemosyne, deusa que personificava a memória, com o poderoso Zeus. São elas: Calíope (poesia épica), Euterpe (música), Érato (poesia romântica), Polímnia (hinos), Melpômene (tragédia), Tália (comédia), Terpsícore (dança), Clio (história), Urânia (astronomia).
REFERÊNCIAS:
Andrade, Mário de. (1980). Pequena História da Música. 8 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia.
Candé, Roland de. (2001). História Universal da Música. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.
Fabre d’Olivet, Antoine. (2004). Música apresentada como ciência e arte: estudo de suas relações analógicas com os mistérios religiosos, a mitologia antiga e a história do mundo. Tradução de Marielza Corrêa. São Paulo: Madras.
Grout, Donald Jay; Palisca, Claude V. (2001). História da Música Ocidental. 2. ed. Lisboa: Gradiva.
Reinach, Théodore. (2011). A Música Grega. Tradução de Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva.
Tomás, Lia. (2005). Música e Filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale.
MÚSICA NA ANTIGA ÍNDIA:
Música Indiana: uma criação dos deuses (20/9/2022);
Ravanastron: o ancestral mais antigo do violino (22/6/2022).