De início, convém esclarecer que o assunto abordado neste texto dá continuidade aos temas explorados nas duas últimas colunas:
Assim sendo, tomando como ponto de partida a visão do musicólogo parisiense Jacques Chailley (1910-1999), visitado por Lia Tomás em Ouvir o Lógos: música e filosofia, o termo “harmonia”, ao longo da história, desencadeou inúmeras discussões e contrassensos entre diversos autores. Trata-se de uma palavra “comumente empregada pelos gregos não apenas na música, mas também na física, na filosofia etc.” (Tomás, 2002, p. 41, nota de rodapé nº 18).
Em outro de seus livros, Música e Filosofia - estética musical, Lia Tomás assegura que a "harmonia", quando relacionada à música, englobava não somente a prática musical e a afinação de instrumentos (lira, cítara etc.), “mas também um equilíbrio físico e mental” (Tomás, 2005, p. 17).
Particularmente no campo musical, um alerta! A “harmonia”, embora seja central na especulação dos filósofos pitagóricos é tratada como “um conceito musical apenas por analogia, ou por extensão, pois o seu significado primeiro é antes de mais nada metafísico” (Fubini, 2019, p. 87).
A teoria dos/das harmoníai
Melhor detalhando o vocábulo harmoníai, este foi concebido, em sua origem, “como um princípio de união cósmica”. Nessa concepção, “o céu todo - ou o Universo - é harmoníai e número”. Essa noção de uma rede de ligações entre a música, a matemática e os fenômenos celestes é resumida na ideia de “música das esferas” (ou harmonia das esferas), um tipo de música não audível (Kahn, 2007, pp. 18, 42, 44, 46 e 68).
Cumpre ressaltar que na astrologia antiga se falava em sete planetas, além da Terra: Lua, Sol, Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter e Saturno (Wisnik, 1989, pp. 99-100). E, como se pode imaginar, a ordem harmoniosa era explicada através desses corpos em movimento, de acordo com um esquema numérico (Oliveira, 2015, p. 27).
Nesse diapasão, Alexandra David-Néel (1868-1969), citada por Simonne Jacquemard, em
Pitágoras e a harmonia das esferas, afirma que, de acordo com o
pensamento pitagoriano, todos os seres e coisas são “agregados de átomos que dançam e, com seus próprios movimentos, emitem sons” (Jacquemard, 2007, p. 129). Tal assertiva quer dizer que a natureza mais profunda da harmonia - e do número - é revelada exatamente pela música (Fubini, 2019, p.87; Tomás, 2002, p.93).
Sobre essa temática, o médico e filósofo Alcmêon de Crotona (nascido em c.535 ou c.510 a. C.) nos deixa sua avaliação:
“Uma evidente harmonia governa o Cosmos e se manifesta em todos os domínios: em primeiro lugar, no domínio da música, que subentende os Números; em seguida, no da geometria, da física, da astronomia e da medicina. A Harmonia aparece como resolução e a chave de todos os fenômenos (...). A alma que governa esses mesmos mecanismos nada mais é do que uma vibração da Harmonia universal” (Alcmêon apud Jacquemard, 2007, pp. 171-172).
Alcmêon de Crotona
(nascido em c.535 ou c. 510 a. C.)
Fonte:
Wikia.org
Essa “harmonia” tem som?
É relevante esclarecer que diversos teóricos da música utilizam o termo “harmonia” - ou “harmoníai” - (ver significado etimológico*) como um correlato para o vocábulo “modo” (modus). Torna-se imprescindível, neste momento, assinalar que os “modos” gregos, guardadas as devidas proporções, equivalem-se às nossas atuais escalas musicais, por meio das quais, geralmente, se realiza uma composição musical. Aqui, em sentido generalizado, as duas palavras são entendidas como um “tipo de melodia” ou mesmo sinônimo de música.
Então, por que não ouvimos essa harmonia? É “porque não deixamos nunca de ouvi-la” (Filolau apud Jacquemard, p. 163). Como assim? Na interpretação de Oliveira (2015, p. 28), seria pelo fato de que sua existência - oriunda dessa conexão entre matemática, cosmologia e música - teria começado, obviamente, com a criação do próprio universo. Assim, os seres humanos não saberiam como seria não sentir o seu som.
Aspectos abstratos da harmonia
Essa revolução no campo musical, supostamente iniciada por Pitágoras (c.580-490 a.C.), marca o avultado interesse de parte dos grandes pensadores gregos acerca dos aspectos mais abstratos da música. Dito de outra forma, esse enfoque não foi direcionado à música audível (concreta) dos executantes, mas sim àquela inaudível (inteligível), puramente pensada (Fubini, 2019, pp. 92-93).
Infere-se, desse cenário, que os filósofos gregos exploraram, essencialmente, a “relação física entre as diferentes frequências sonoras - resultante dos movimentos dos corpos no universo - e o efeito de suas combinações” (Zille, 2016, Prefácio). Complementando, Charles Kahn (2007, p.18) traz um arrazoado pensamento de
Aristóteles** (384-322 a. C.): “
os pitagóricos começaram observando as razões numéricas das consonâncias musicais [oitavas, quintas etc.] ou
harmoníai”.
Os efeitos dessa "harmonia", de algum modo simbolizam as qualidades morais, bem como outras abstrações (Tomás, 2002, p. 92). Em conformidade com as elucubrações filosóficas, sobretudo pitagorianas, a autora Simonne Jacquemard imagina que seria devido à lei da “harmonia” (operada por meio de cálculos matemáticos) que o corpo e a alma se interpenetravam (Jacquemard, 2007, pp. 177-178).
Dando sequência à tal raciocínio e trazendo os argumentos sustentados pelo historiador W. K. Guthrie (1906-1981), Lia Tomás salienta que toda natureza é similar e, ainda, que a alma do homem (microscópica) está intimamente relacionada com a estrutura do universo (macroscópica) (Tomás, 2002, pp. 91 e 105). Retornando às palavras de Jacquemard: “A própria alma é um Número”. Na sequência, essa autora, invocando Filolau de Crotona*** (c.470-385 a. C.), prossegue versando que “para todos os homens, a natureza do Número é cognitiva, diretiva [e] educativa” (Jacquemard, ibidem, p. 177).
Aspecto educativo dos harmoníai
Examinando o tema da “ética musical” grega, o francês Roland de Candé (1923-2013) relata que foi o filósofo-músico grego Damon**** ou Damão de Oa (século V a. C.), quem primeiro formulou uma teoria dos “modos” musicais. Nesta senda, a investigadora Tarsila Doná observa que o trabalho especulativo de Damon baseia-se, exatamente, “no princípio da identidade entre as leis que regulam as razões entre os sons e as leis que regulam o comportamento da alma” (Andrew Barker, apud Doná, 2014, pp. 13-14).
É justamente por esse viés que Damon pressupunha que a música poderia exercer “uma direta e profunda influência sobre os espíritos [estados da alma dos ouvintes ou dos educandos] e, por consequência, sobre a sociedade em seu conjunto” (Tomás, 2002, p. 41). De fato, Damon “teorizou sobre a questão da existência de um vínculo entre o mundo dos sons e o mundo ético” (Tomás, 2005, p. 17). Para que esse vínculo aconteça, obviamente é necessário “que a música, na sua consciência física”, seja imaginada como “a ponte de passagem da realidade sensível para o mundo inteligível” (Fubini, 2019, p. 93). E, como isso seria possivel? No entendimento de Damon, seria por intermédio da mímesis, isto é, pela imitação (Candé, 2001, p. 73; Fubini, 2019, p. 96).
Convencionou-se, naqueles tempos, que um determinado "modo" musical encontrava-se “associado a um
éthos específico, ou seja, a um caráter particular de ser”. Consequentemente, as “melodias eram compostas sobre esses modos e, por isso, adquiriam a qualidade específica de cada um deles como, por exemplo, lamentoso, heróico, entre outros” (Tomás, 2005, p. 17)
Quais sentimentos/paixões/sensações podem ser despertados a partir dos diferentes modos/harmonias - dórico, jônico, lídio, frígio etc.? Devido à limitação de espaço, esta questão será respondida na próxima coluna.
NOTAS:
* Em sua origem, o termo "harmonia" (harmoníai) significava algo com “ajuste” ou “junção”. Referia-se “simplesmente ao encaixe de duas peças de madeira, como, por exemplo, das tábuas de uma jangada ou das pranchas de um navio. Assim, o fundamento de sua concepção concentrava-se na ideia de um ajustamento mútuo. O termo harmonia tinha, na Grécia, um grande campo de aplicação, mas sempre significava a união de coisas contrárias ou de elementos em conflito organizados em um todo”. “Em um momento posterior, a harmonia, entendida como medida e proporção, ficará restrita ao universo da música e será compreendida como um sinônimo desta” (Tomás, 2005).
** Aristóteles (384-322 a. C.) tentou esclarecer os pontos essenciais das doutrinas pitagóricas. Aristóteles afirma que a própria filosofia de Platão (428-348 a. C.) foi profundamente influenciada pelo ensinamento pitagórico. Aristóteles faz parte de um grupo de autores que se encarregaram de transmitir a história do Mestre Pitágoras e sua comunidade, são eles: Artistóxeno de Tarento (século IV a. C.), Plutarco de Queronéia (por volta de 50-120 a. C.), Aécio (por volta de 100 d. C.), Diógenes Laércio (século III d. C.) Jâmblico de Cálcis (240-325 d. C.) etc.
*** Filolau de Crotona (c. 470-385 a. C.): permanece como um dos mais famosos discípulos (segunda geração) de Pitágoras de Salmos (c.580-490 a.C.) e um dos mais completos autores pitagóricos. Para Filolau, assim como para Pitágoras, todas as coisas eram constituídas de números. Filolau, em acréscimo, defendia, por exemplo, que a "harmonia" seria distinguida em pares de opostos, ou seja, seria a unificação do múltiplo e a concordância do discordante (Jacquemard, 2007, pp. 86 e 263; Kahn, 2007, pp. 43 e 92).
**** Damon (século V a. C.): filósofo-músico filho de Damônides. Nasceu na região de Atenas de O? (também grafado Oa). É bastante provável que tenha sido professor e conselheiro do estadista Péricles (c.495-429 a. C.).
LEIA TAMBÉM:
1) A música sob a perspectiva dos pitagóricos - postado em 21/05/2020;
2) A ética e a música na Antiguidade Clássica - postado em 29/05/2020;
3) Orfeu e os "modos" musicais gregos primitivos - postado em 14/07/2020;
4) O "éthos" dos modos musicais - postado em 19/07/2020;
5) Poeta-músico (aedos, bardos) - postado em 21/08/2015;
6) O poder da música - postado em 05/06/2015.
REFERÊNCIAS:
Candé, Roland de. (2001). História Universal da Música. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.
Doná, Tarsila de O. Delfine. (2014).
Métrica e Ritmo das Odes de Horácio. (Dissertação de Mestrado, USP, Brasil).
Fubini, Enrico. (2019).
Estética da Música. Lisboa: Edições 70.
Jacquemard, Simonne. (2007).
Pitágoras e a Harmonia das Esferas. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Difel.
Kahn, Charles (2007).
Pitágoras e os Pitagóricos: uma breve história. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Edições Loyola.
Oliveira, Wander. (2015).
Matemática e Música: interdisciplinaridade no ensino da trigonometria e uma proposta de atividades para sala de aula. (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Londrina, Brasil).
Nasser, Najat. (1997, jul/dez). O ethos na música grega. In
Boletim do CPA - Centro de Estudos e Documentação sobre o Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e sua Posteridade Histórica, Ano II, n. 4, pp. 241-254, Campinas/SP, IFCH-UNICAMP.
Tomás, Lia. (2005).
Música e Filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale.
Tomás, Lia. (2002).
Ouvir o Logos: música e filosofia. São Paulo: Editora da UNESP.
Wisnik, José Miguel. (1998). O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Zille, J. A. B. (2016). In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.).
Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3). Barbacena/MG: Editora da Universidade de Minas Gerais.
MÚSICA NA ANTIGA ÍNDIA:
Música Indiana: uma criação dos deuses (20/9/2022);
Ravanastron: o ancestral mais antigo do violino (22/6/2022).