Por que fazer menção - no título desse texto - aos “pitagóricos” e não diretamente a Pitágoras* (c.579-495 a.C.)? Uma pergunta semelhante foi feita pelo pesquisador Dennis Bessada (2014, p. 87) em seu artigo A Gênese da Harmonia das Esferas no Antigo Pitagorismo. Em resposta, Bessada argumenta que determinar o real legado de Pitágoras é uma tarefa complexa, pois o próprio Pitágoras não deixou nenhum escrito. Na realidade, conforme atesta Charles Kahn (2007, p. 41), o mesmo aconteceu com os seus primeiros discípulos. Segundo Kahn, ao que parece, a mais antigo trabalho (fragmentos) que aborda a história da filosofia pitagórica foi escrito por Filolau de Crotona (c.470-385 a. C.). Sendo assim, seria mais prudente usar o termo “pitagóricos” para se referir ao legado de Pitágoras e seus discípulos.
Dito isso, é importante ainda ter em mente que, para os antigos gregos, o termo “música” tinha um sentido mais amplo do que aquele que hoje lhe damos. Para Grout & Palisca (2001, pp. 19-20), a “relação verbal sugere que entre os gregos a música era conhecida como algo comum a todas as actividades que diziam respeito à busca da beleza e da verdade”. Destaca-se, por exemplo, que música e poesia eram dois termos praticamente sinônimos.
Seguindo a trilha da mitologia clássica, a maioria de nós já ouviu falar de Apolo (deus do sol, da música etc.) e seu filho Orfeo (um semideus poeta e músico). Mas, particularmente, no campo da prática musical entre os mortais, por muito tempo destacou-se a figura dos
aedos (ver coluna:
poeta-músico), um artista que gozava de um enorme prestígio naquela sociedade. No entanto, naquele contexto, existia a crença de que o ofício dos aedos não era aprendido. Na realidade, a criação poética era uma dádiva concedida por meio de inspiração divina das
musas**.
Em todo caso, sabe-se que entre os séculos VIII e V a. C., aproximadamente, a literatura grega era sustentada por dois grandes eixos: a literatura mítico-poética - representada por Homero e Hesíodo, por exemplo, e a literatura filosófica. Na opinião de José Antônio Baêta Zille (2016, Prefácio), os primeiros filósofos gregos foram os responsáveis por promover a transição do mito (instância da invenção) ao logos (instância das descobertas).
Sabe-se que os primeiros filósofos - os chamados pré-socráticos - surgiram por volta do século VI a. C. Essa geração de pensadores esteve ocupada principalmente com a busca pela inteligibilidade do mundo. Nessa direção, o musicólogo Zille (2016) diz que “será nesse movimento primordial que alguns pensadores, entre eles Pitágoras* (c.579-495 a.C.), contemplam a concepção de que a Natureza constitui uma unidade”. A professora Maria Clara Saboya (2015, p. 2) lembra que, se para alguns “o elemento que estaria presente em todos os seres e em cada um” poderia ser a água (Tales), o ar (Anaxímenes), o átomo (Demócrito) ou, ainda, quatro elementos - terra, água, fogo e ar (Empédocles), o número era considerado por Pitágoras, a arché (elemento constitutivo) de todas as coisas.
Título da obra:
Scuola di Atene (recorte)
Autor: Raffaello Sanzio (1483 - 1520)
Fonte: Wikimedia Commons
Em seu trabalho acadêmico Matemática e Música, Wander de Oliveira argumenta que no entendimento dos pitagóricos, “a ordem harmoniosa de todas as coisas era explicada como corpos em movimento de acordo com um esquema numérico”. Isto é, em termos aritméticos, o número se tornou o “princípio fundamental de proporção, ordem e harmonia do universo” (Oliveira, 2015, p. 27). E nessa seara, os pitagóricos propagavam a ideia de que “o homem, como parte da natureza, está envolto em uma combinação de números e numericamente relacionado à natureza, como uma parte está para o todo” (Zille, 2016).
“Harmonia das Esferas” - Matemática e Música
Particularmente sobre a relação entre os números e música, os pitagóricos acreditavam que os planetas e estrelas, ao se moverem pelo cosmos, produziam música. Convencionou-se chamar essa manifestação pelos termos “Harmonia das Esferas” ou “Música das Esferas”. Acreditava-se que uma ordem perfeita imperava no Universo e que os movimentos gerados nesse evento soavam de forma semelhante à vibração de uma corda, ou seja, produzindo harmônicos perfeitos. E, recorrendo mais uma vez ao texto de Wander de Oliveira (2015, p. 28), salienta-se que “a altura das notas de cada esfera na escala de tons celestial seria regulada pela velocidade de sua rotação, e as distâncias entre esses corpos celestes estariam relacionadas com os intervalos musicais”.
Por que não ouvimos a Música das Esferas?
Seria pelo fato de que a sua existência - oriunda dessa conexão entre matemática, cosmologia e música - teria começado, obviamente, com a criação do próprio universo. Assim, “os seres humanos não saberiam como seria não sentir o seu som” (Oliveira, 2015, p. 28).
O “mito de Er, o Armênio” de Platão
A sistemática visão do cosmo musical foi explorada no Livro X de A República de Platão no contexto em que o discurso sobre equilíbrio da polis (cidade-estado) não deixa de convergir, em alegoria, para a harmonia celeste concebida como harmonia musical. Para tanto, Platão narra o “mito de Er - o Armênio”. Em resumo, esse personagem, após ser morto em uma batalha, é julgado nos domínios celestiais. E a ele foi concedido o direito de voltar à vida, para, como mensageiro, narrar o que havia visto no além: a totalidade cósmica.
Em sua analogia ao conteúdo relatado pelo Armênio, José Miguel Wisnik faz alusão a uma “vitrola cósmica”: círculos estelares contendo sete planetas conhecidos pela astrologia antiga (Lua, Sol, Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter e Saturno), os quais “giram em rotação suave pendidos de um fuso, em várias velocidades (seguindo os diferentes ritmos planetários)”. Sobre cada círculo “gira uma Sereia emitindo um som diferente e, de todas elas, das oito, resultava um acorde de uma única escala” (Wisnik, 1989, pp. 99-100).
O músico Pitágoras
Diz-se que Pitágoras*, além de filósofo e matemático, também era músico. Há quem diga, inclusive, que ele tocava lira. Sobre isso, Wander de Oliveira diz que
“Para ele [Pitágoras], a Música, além de arte, servia à purificação da mente, à cura de doenças, e exercia um papel preponderante no domínio da agressividade do ser humano. Pitágoras utilizava-se da Música em seus ensaios matemáticos, para criar um ambiente tranquilo e harmonioso”. (Oliveira, 2015, p. 28).
Sob essa perspectiva, costuma-se dizer que os Pitágoras fundou “os conhecimentos de harmonia musical - relação física entre as diferentes frequências sonoras e o efeito de suas combinações”, vinculando-os ao comportamento humano (Zille, 2016). Em outros termos, é na essência da visão pitagórica que se encontra a concepção metafísico-fisiológica, na qual a alma seria uma vibração da Harmonia que rege todo o Universo (Jacquemard, 2007).
O martelo na bigorna
Simonne Jacquemard, em seu livro Pitágoras e a Harmonia das Esferas, deixa registrada a versão considerada por ela como a mais recente de uma lenda descrita pelo filósofo neoplatônico Jâmblico de Cálcis (c.245-325 d. C.). Conforme essa lenda, Pitágoras buscava alguma forma de realizar seus experimentos sobre acústica quando, por meio da providência divina, ouviu alguns sons decorrentes de marteladas sobre o ferro em uma bigorna. O matemático, então, dentre os diversos ruídos, teria identificado alguns intervalos musicais: uma oitava, uma quarta e uma quinta. Em seguida, adentrou àquela oficina e, após alguns testes, concluiu que aquelas diferenças entre os intervalos resultavam da dissemelhança dos pesos dos martelos.
Diz a lenda que Pitágoras daria sequência à essa experiência em sua casa, mas, desta feita, utilizando-se de quatro cordas esticadas e fixadas em paredes. Nessas cordas, o matemático teria acoplado pesos com o objetivo de obter os distintos intervalos sonoros. O passo seguinte foi usar o mesmo procedimento sobre um cavalete de um “tensor de cordas”. Nesta fase do experimento, o referido pesquisador teria usado um “monocórdio” (antigo instrumento musical de laboratório), ou sua lira, dependendo da versão dessa lenda. Foi dessa maneira que, supostamente, Pitágoras acabou descobrindo e sistematizando a Ciência Musical.
Para Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (2010, p. 436 apud Reyes 2002 e Gouk 2006), tal “harmonia” ou “música das esferas” que “pode parecer uma alegoria ingênua ou uma lucubração no mínimo insólita para os não iniciados” acabou influenciando vários sábios de gerações futuras, tais como Ptolomeu (c.96-168 d.C.), Da Vinci (1452-1519), Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630), Newton (1643-1727) etc. Freitas complementa dizendo que esses personagens também “se ocuparam desses sons vindos do céu, alinhando-se a uma imemorial tradição mística e intelectual”.
Em todo caso, os argumentos pitagóricos sobre a arte musical transformaram-se nos pilares que sustentaram a teoria apregoada, inicialmente, por Dámon (século V a. C.), e, mais adiante, nos escritos de Platão (428-348 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.): a “Doutrina do Ethos”.
NOTAS:
* Música também é entendida como uma forma adjetivada de musa que, na mitologia clássica, refere-se a qualquer uma das deusas irmãs que inspiravam a criação artística ou científica. Eram nove as deusas filhas de Mnemosyne (deusa que personificava a memória) com o poderoso Zeus. São elas: Euterpe (música), Polímnia (hinos), Calíope (poesia épica), Érato (poesia romântica), Melpômene (tragédia), Tália (comédia), Clio (história), Terpsícore (dança), e Urânia (astronomia).
** Segundo Charles Kahn, "na literatura da Antiguidade tardia, Pitágoras surge como um gênio único, o pai fundador da matemática, da música, da astronomia e da filosofia" (2007, p. 15). No entanto, a figura histórica desse pensador "quase desapareceu por trás da nuvem de lendas que se formou em torno de seu nome" (p. 21). Em seu livro Pitágoras e os Pitagóricos, Kahn relata que "Pitágoras, filho de Mnesarco, nasceu na ilha de Salmos em algum momento do século VI a. C. (...) deixou a Jônia e estabeleceu-se no sul da Itália, na segunda metade do século VI. Em Crotona, fundou "a seita ou comunidade que recebeu seu nome" (pp. 22-23). Mais adiante, "no tempo de Platão, temos conhecimento de uma grande variedade de pitagóricos" (p. 61). "Do século IV em diante, porém, o futuro da tradição pitagórica é garantido pela absorção e pela transformação das ideias pitagóricas na obra de Platão" (p. 73).
LEIA TAMBÉM:
Grout, D. J; Palisca, C. V. (2001). História da Música Ocidental. 2. ed. Lisboa: Gradiva.
Jacquemard, S. (2007). Pitágoras e a Harmonia das Esferas. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: DIFEL.
Kahn, C. (2007). Pitágoras e os Pitagóricos: uma breve história. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Edições Loyola.
Wisnik, J. M. (1989). O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras.
Zille, J. A. B. (2016). In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.), Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3, Prefácio). Barbacena, MG: Editora da Universidade de Minas Gerais.
Recuperado de http://eduemg.uemg.br/component/k2/item/91-musicologia-s-serie-dialogos-com-o-som-vol-3
Título da obra:
Scuola di Atene
Autor: Raffaello Sanzio (1483 - 1520)
Fonte: Wikimedia Commons