Na obra Contemplating Music: Challenges to Musicology (1985), traduzida para o português sob o título Musicologia (1987), Joseph Kerman registra que o termo “musicologia” ("Musicology") é uma adaptação da palavra francesa musicologie, “em si mesmo um análogo do alemão oitocentista Musikwissenschaft [Ciência da Música]”. O autor segue dizendo que esse vocábulo foi originalmente entendido como “incluindo o pensamento, a pesquisa e o conhecimento de todos os aspectos da música”. Nesse sentido, Kerman acrescenta:
“A musicologia abrangia desde a história da música ocidental até a taxonomia da música ‘primitiva’, como era então chamada, desde a acústica até a estética, e desde a harmonia e o contraponto até a pedagogia pianística”. (Kerman, 1987, p. 01).
O verbete “Musicology”, encontrado em The Harvard Dictionary of Music, editado pelo musicólogo Don Michael Randel, pode ser assim traduzido: “o estudo acadêmico da música, onde quer que seja encontrada histórica ou geograficamente" (Randel, 1999, p. 542, tradução nossa).
Nota-se que tais publicações apresentam definições bastante abrangentes para o termo musicologia. Corroborando essa opinião, o pesquisador Richard Parncutt, em um artigo publicado em 2012, ao comentar os verbetes Musicology e Musikwissenschaft disponibilizados, respectivamente, nos dicionários New Grove Dictionary of Music and Musicians e Musik in Geschichte und Gegenwart, escreve:
“A musicologia atual abrange todas as abordagens disciplinares para o estudo de toda música, em todas as suas manifestações e em todos os seus contextos, sejam eles de ordem física, acústica, digital, multimídia, social, sociológica, cultural, histórica, geográfica, etnológica, psicológica, fisiológica, medicinal, pedagógica, terapêutica, ou em relação a qualquer outra disciplina ou contexto que seja musicalmente relevante”. (Parncutt, 2012, p. 147).
Richard Parncutt, no entanto, adverte que a extensão e abrangência da lista supramencionada não implica que “qualquer coisa sirva” em musicologia. Para esse investigador,
“os mais altos padrões acadêmicos internacionais podem ser, e realmente devem ser almejados em cada uma de suas subdisciplinas (...). Isso implica, porém, que qualquer disciplina séria que aborda questões musicais ou procura explicar o fenômeno musical pode ser, e deve ser, considerada como parte da musicologia. (Parncutt, 2012, p. 147).
Manfred Bukofzer (1910-1955), ainda em 1957, fazia suas reflexões a respeito da supracitada abrangência da musicologia. Traduzindo as palavras desse autor em The Place of Musicology, é por meio desse alcance que se pode fazer contato próximo com qualquer manifestação musical. Para Bukofzer, a musicologia é um campo especializado apenas na medida em que essa abordagem possa se tornar objeto de um estudo restrito (Bukofzer, 1957, p. 21).
Mais adiante, Manfred Bukofzer (1957, p. 26) defende a ideia que mesmo possuindo esse amplo espectro de atuação, o objetivo final da musicologia, como o de qualquer outra disciplina acadêmica, é o entendimento. Para esse autor, é por meio da compreensão que a música se torna uma experiência estética mais intensa [Será?]. Ademais, Bukofzer argumenta que diante desse objetivo o musicólogo não está interessado em “defender” uma ou outra manifestação artística, do passado ou do presente. Ele tenta compreender todas as formas que a música assumiu e enxerga cada uma delas como uma manifestação da mente humana.
Trazendo a contribuição de José Antônio Baêta Zille, no Prefácio do volume Musicologia(s) da Série Diálogos com o Som (2016), publicação da Universidade Estadual de Minas Gerais, é sabido que a música acompanha a humanidade desde seus primórdios. E há registros de que, ao longos dos séculos, foi alvo de constantes reflexões por parte de matemáticos, filósofos, teóricos musicais etc. Aliás, um breve resumo acerca desse trajeto será apresentado em outro texto. Enfim, saltando algumas centúrias, apenas no século XIX, na Alemanha, a partir dos esforços do compositor Johann Bernhard Logier (1777-1846) ou do editor musical Karl Franz Friedrich Chrysander (1826-1901) é que a musicologia se consolida. Assim, na segunda metade do Oitocentos, passa a ser tratada como um ramo autônomo do conhecimento humano.
Também é importante relatar que, em 1885, o musicólogo e escritor boêmio-austríaco alemão Guido Adler (1855-1941) propôs a distinção entre Musicologia Histórica e Musicologia Sistemática. De acordo com Zille (2016), além da natureza histórica da musicologia, Adler definiu, no segundo caso, a cobertura desse campo também em seus aspectos teóricos, analíticos, sociológicos, culturais, estéticos e educacionais.
Evidentemente, adentrando ao século XX, as discussões em torno das subdisciplinas da Musicologia e de seus objetos de estudo se ampliaram. Por conseguinte, a classificação de Guido Adler sofreu modificações. O campo seria fragmentado, originando a Musicologia Comparada, a Musicologia Cultural etc. Nesse ínterim, surgiu também a ideia de ter a Etnomusicologia como uma área autônoma da Musicologia (esse tema será abordado em outra ocasião). No mais, destaca-se o predomínio da Musicologia Histórica até o século XX.
Saltando mais algumas décadas e buscando outro importante recorte histórico, retornamos a Joseph Kerman. Esse musicólogo, em meados dos anos 1980, manifestou-se de maneira enfática em Contemplating Music: Challenges to Musicology:
“Mas, na prática acadêmica e no uso geral, musicologia passou a ter um significado muito mais restrito [grifo nosso]. Refere-se, hoje [1985], ao estudo da história da música ocidental na tradição de uma arte superior (...). Além disso, na concepção popular - e na de muitos acadêmicos - a musicologia é restrita não só quanto ao objeto de estudo que abrange, mas também quanto à abordagem desse objeto de estudo (...). A musicologia é percebida como tratando essencialmente do fatual, do documental, do verificável e do positivista [grifo nosso]. (Kerman, 1987, p. 02).
Seguindo essa trilha, sabe-se que a construção da história flertou, ao longo do tempo, com “diversas correntes ou tendências” (Ezquerro-Esteban, 2016, p. 31). Nesse trajeto, como bem assinala Joseph Kerman (citação supra), historiadores transitaram, entre outros, nos caminhos explorados pela “doutrina positivista” de Auguste Comte (1798-1857). Nesse sentido, Antonio Ezquerro-Esteban acrescenta que a história da música se centrava no “positivismo” das informações: “recompilar nomes de músicos, datas de estreia de obras, dados sobre acontecimentos concretos etc”. Tal procedimento mostra-se, todavia, desprovido de “uma particular reflexão [crítica]” sobre essa história.
Ainda explorando esse viés, a pesquisadora Beatriz Magalhães Castro enfatiza que as “dimensões restritas do modelo adleriano [de Guido Adler], baseado no escopo histórico evolucionista e funcionalista do positivismo comtiano [de Auguste Comte]” foram explorados por Joseph Kerman como ponto de articulação em suas argumentações “contra os modelos vigentes nos últimos cerca de 100 anos de prática musicológica” (Castro, 2016, p. 122).
Para a grande maioria dos musicólogos, parafraseando Beatriz Magalhães Castro, a Musicologia, com a sua “emancipação no positivismo”, mesmo que de forma tardia em relação a outras áreas (história, sociologia, Antropologia etc.), “teve a sua mais decisiva revisão crítico-conceitual” em fins do século XX (Castro, 2016, p. 122). Assim, para essa autora, bem como para a maioria dos musicólogos, a publicação de Contemplating Music: Challenges to Musicology transformou-se em um marco decisivo para o campo da musicologia. Mesmo sendo repetitivo, vale ressaltar que Joseph Kerman, nessa obra, expôs sua defesa por uma musicologia mais inclusiva e, sobretudo, mais crítica.
Conforme atesta Maria Alice Volpe (2016, p. 163), as críticas de Joseph Kerman (1924-2014), da forma como foram arrazoadas em Contemplating Music, somadas às considerações de outros destacados autores - a exemplo de Leo Treitler (n. 1931) - repercutiram na geração seguinte de musicólogos. Nas décadas que se seguiram, dezenas de obras foram publicadas deixando a contribuição de um grande número de investigadores na recorrente “elaboração revisional, percorrendo e rediscutindo campos, eixos teóricos-conceituais e seus paradigmas” (Castro, 2016, p. 126). Abre-se, então, o capítulo da “Nova Musicologia”. Mas, essa é uma outra história!
Referencias:
Castro, Beatriz Magalhães. (2016). Musicologia brasileira: corpo, problemas, perspectivas. In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.), Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3, pp. 113-146). Barbacena, MG, Brasil: Editora da Universidade de Minas Gerais.
Ezquerro-Esteban, Antonio. (2016). Desafios da Musicologia pan-hispânica na atualidade: uma reflexão. In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.), Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3, pp. 25-40). Barbacena, MG, Brasil: Editora da Universidade de Minas Gerais.
Kerman, Joseph. (1987). Contemplating Music: Challenges to Musicology. São Paulo: Martins Fontes.
Manfred Bukofzer. (1957). The Place of Musicology: in american institutions of higher learnings. New York: The Liberal Arts Press.
Parncutt, Richard. (2012). Musicologia Sistemática: a história e o futuro do ensino acadêmico musical no ocidente. Revista Em Pauta, Porto Alegre, RS, Brasil (Vol. 20, n. 34/35). ISSN 1984-7491.
Randel, Don Michael. (1999). Musicology. The Harvard Dictionary of Music (4th ed.). Massachusetts, USA: The Belknap of Harvard University Press.
Volpe, Maria Alice. (2016). Musicologia em contextos institucionais interdisciplinares: desafios intergerações, um testemunho brasileiro. In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.), Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3, pp. 159-172). Barbacena, MG, Brasil: Editora da Universidade de Minas Gerais.
Zille, José Antônio Baêta. (2016). In Edite Rocha e José Antônio Baêta Zille (orgs.), Musicologia[s] - Série Diálogos do Som. Ensaios (Vol. 3, Prefácio). Barbacena, MG, Brasil: Editora da Universidade de Minas Gerais.