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Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

Música Clássica

E a “Procissão do Fogaréu” sucumbiu diante da covid-19

| 25.03.20 - 15:28
A “Procissão do Fogaréu”, que vem ocorrendo anualmente na Cidade de Goiás* como parte da “Semana Santa”, não irá ocorrer na edição de 2020. O cancelamento de tal procissão nessa tradicional festa religiosa se deve à situação de emergência no Brasil, causada pela pandemia da covid-19. 
 
Na realidade, em atendimento aos apelos governamentais (via Decretos), foi suspensa a realização de várias cerimônias constantes da programação da “Semana Santa”. A referida informação foi prestada recentemente pela Organização Vilaboense de Artes e Tradições (O.V.A.T.**- entidade que, desde os anos 1960, dedica-se à preservação da cultura e das tradições da histórica Cidade de Goiás) a alguns veículos da imprensa goiana.

Como acontece a Procissão do Fogaréu?
 
Na madrugada de quarta para a quinta-feira Santa, diversos personagens se reúnem à porta da antiga Igreja da Boa Morte (atual museu da Boa Morte), próximo ao conhecido Coreto, no centro da cidade. À meia-noite, as luzes do Centro Histórico da cidade são apagadas e, após o canto de um moteto, ao rufar dos tambores tem início a representação da Via Crucis de Jesus Cristo, um festejo para-litúrgico na forma de procissão. O percurso, somado às pregações religiosas, tem uma duração aproximada de uma hora e meia. Para Rafael Lino Rosa (PUC/GO), esse formato (procissão) permite que o sagrado se propague “pelas veredas da vida cotidiana”, ou seja, que caminhe pelos espaços profanos (Rosa, 2016, pp. 115-116). 


Foto: Judson Castro 

 
 
A pianista e pesquisadora Belkiss Spencière Carneiro de Mendonça, em 1981, em seu livro A Música em Goiás, relatava algumas características daquele festejo:
 
“antigamente ela [Procissão] só era acompanhada pelos homens, todos carregando archotes [tochas] acesos e andando [descalços] silenciosos e em passos muito rápidos no centro das ruas. Só se ouvem o ruído dos passos nas pedras do calçamento e o bater compassado dos tambores” (Mendonça, 1981, p. 171).
 
De fato, nesta representação teatral, quarenta personagens (nem sempre foi essa quantidade), conhecidos como “Farricocos”, todos encapuzados (não confundir com o vestuário dos membros da Ku Klux Klan), personificam os soldados romanos. A indumentária (semelhante a uma túnica) desses personagens, embora simples, causa um grande efeito visual ao espetáculo, devido às suas cores vibrantes.

 
Foto: Othaniel Alcântara Jr. (2020)

 
Nas palavras da investigadora Luana Nunes Martins de Lima (UFG), “a Procissão do Fogaréu é repleta de detalhes e os elementos nela presentes, como a escuridão, as tochas acesas, os homens encapuzados, entre outros, criam um clima medieval assustador e excitante de grande beleza plástica” (Lima, 2012, p. 124).
 
É imprescindível dizer que a presença do Messias é simbolizada por um estandarte que encabeça o cortejo. No tecido desse pendão “se vêem pintadas a frente e as costas de Jesus sendo açoitado. Essa pintura supõe-se datar de 1800” (Mendonça, 1981, p. 196). No entanto, considerando as palavras da musicóloga Maria Augusta Calado de Saloma Rodrigues (1982, p. 49), em algum momento do Oitocentos, esse estandarte foi restaurado pelo artista plástico goiano José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). 


Estandarte pintado com a imagem de Cristo (frente)
Fonte: Tese de Doutorado de Rafael Lino Rosa (p. 119)


 
Atualmente, o estandarte original - restaurado ainda mais uma vez, em meados do século XX -, encontra-se exposto no Museu da Boa Morte. Enquanto isso, nas edições mais recentes da “Procissão do Fogaréu”, conforme o registro de Luana Lima, tem sido usada uma imagem substituta, obra de Maria Veiga (Lima, 2012, p. 124).
 
Uma grande quantidade de pessoas (turistas e moradores locais) acompanha os “Farricocos”, marchando pelas ruas de pedra do Centro Histórico da Cidade de Goiás. Durante essa caminhada, os participantes (artistas e público) passam pela ponte sobre o Rio Vermelho (aquela próxima à Casa de Cora Coralina) e, logo depois, fazem a primeira parada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Naquele local, são encontrados os “restos da Ceia do Senhor”, mas Jesus já havia saído para o Monte das Oliveiras. Aqui, acontece a primeira pregação religiosa. 
 


A "Procissão do Fogaréu" passando pela ponte sobre o Rio Vermelho (2014)
Foto cedida por Ney Couteiro


 
Em seguida, o cortejo se dirige para a Igreja de São Francisco de Paula. 
 
Nas escadarias de acesso a esse templo, ao toque da fanfarra (clarim) e do som de tambores, um dos “farricocos” - aquele que carrega a imagem de Jesus (estandarte de linho) - anuncia a dramática prisão de Cristo. Na sequência, transcorre um ato litúrgico dirigido pelo Bispo Diocesano.


 Igreja de São Francisco de Paula
Foto: ipatrimônio.org


Por fim, após o término da pregação (costumeiramente feita pelo Bispo), a procissão retorna à Igreja da Boa Morte, onde a multidão se desfaz. O tumulto do caminhar das pessoas, na opinião da musicóloga Maria Augusta Calado, simboliza o povo de Jerusalém, desorientado com os últimos acontecimentos.
 
Quando surgiu a Procissão do Fogaréu?
 
Reiterando o que foi anteriormente mencionado, a “Procissão do Fogaréu” faz parte da programação da “Semana Santa” na Cidade de Goiás; programação esta que é de origem europeia. Trata-se, mais precisamente, de uma prática do Medievo luso-espanhol. Conforme tradição oral, registrada por Belkiss Spencière Mendonça e Maria Augusta Calado, em seus livros, a celebração da primeira “Semana Santa” em Vila Boa de Goyaz ocorreu em 1745, por iniciativa do padre espanhol João Perestrello de Vasconcelos Spínola ***. E, particularmente, os “farricocos” nos remetem às cerimônias espanholas, como as de Sevilha e Toledo.
 
Mas, ao contrário do que é divulgado por alguns profissionais de imprensa, a “Procissão do Fogaréu” não é uma “Tradição de 270 anos”. Em concordância com o relato da investigadora Mônica Martins da Silva (UFSC), a Organização Vilaboense de Artes e Tradições teria “resgatado”, na década de 1960, uma tradição já perdida no tempo. Cumpre dizer que essa autora fundamenta-se na publicação intitulada 40 anos promovendo a cultura e resgatando as tradições, elaborada em 2005, pela O.V.A.T.**, por ocasião das comemorações, obviamente, dos quarenta anos dessa entidade (Silva, 2011, p. 219).
 
Mais recentemente, alguns autores, entre eles Rafael Rosa (2016, p. 121) e Luana Lima (2012, p. 130) -  já mencionados nesse texto -, debatem sobre o fato de ser a “Procissão do Fogaréu” uma tradição reinventada. E, nesse caso, teria sido a busca por memórias antigas, com seu valor intrínseco relacionado ao imaginário religioso e cultural vilaboense, o principal motivador desse resgate? Ou, ao se resgatar esse espetáculo, nos anos 1960, teria sido levado em conta, primariamente, o seu potencial turístico? 

E como é a música na Procissão do Fogaréu?
 
Ampliando o tema, toda a música executada atualmente nas comemorações da “Semana Santa” vilaboense foi composta por goianos. Destacam-se, nesse cenário, os nomes de Basílio Martins Braga Serradourada (1804-1874), de seu filho, o cônego José Iria Xavier Serradourada (1831-1898), de José do Patrocínio Marques Tocantins (1844-1889) e, também, de Pedro Ribeiro da Silva (1867-1920). Um registro fonográfico de obras desses compositores foi organizado pela Prof. Dilma Barbosa Yamada (UFG), em 1998. O CD “Semana Santa em Goiás” é o tema da próxima coluna.



Capa do CD "Semana Santa em Goiás" (1998)





Sugestão de leitura:
PAIXÕES EM CENA: A Semana Santa na Cidade de Goiás (século XIX)
Ana Guiomar Rêgo Souza (EMAC/UFG)
Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília



NOTAS 
 
* O arraial de Sant´Anna (fundado em 1727) passou a se chamar Vila Boa de Goyaz, em 1739. Em 1749, alguns anos após o seu desmembramento da Capitania se São Paulo, tornou-se a capital da recém-criada Capitania de Goyaz. Em 1818, após o declínio do “Ciclo do Ouro”, Vila Boa receberia o nome de Cidade de Goiás. Com essa alcunha, continuaria como capital da Província de Goiás, criada em 1821 (ou 1822, ano da Independência do Brasil), bem como do Estado de Goiás, nome adotado a partir da Proclamação da República (1889). Em 1937, ocorreu a transferência da capital para a cidade planejada de Goiânia. Em 2001, a Cidade de Goiás obteve o título de Patrimônio Histórico da Humanidade, concedido pela Unesco.
 
** A Organização Vilaboense de Artes e Tradições (O.V.A.T.) trata-se de um grupo formado nos anos 1960, por jovens residentes na antiga capital do Estado de Goiás. Costuma-se ressaltar o nome do Sr. Elder Camargo de Passos, dentre os demais integrantes daquele grupo, como sendo o que exerceu e continua exercendo um papel de destaque na liderança da entidade. Elder Passos é autor do livro Goyaz: de arraial a patrimônio mundial (2018). Além disso, a trajetória desse memorialista é contada no documentário Passos da Tradição, lançado também no ano de 2018. - Leia mais na matéria publicada pelo Jornal A Redação (27/08/2018): Goiás sedia lançamento de documentário sobre Elder Camargo de Passos.
 
*** Ao que parece, o padre Perestrello já se encontrava em Vila Boa de Goyaz quando a atual Catedral começou a ser construída, em 1743. A Matriz de Sant’Ana, como é mais conhecida, foi erigida por iniciativa do Ouvidor Geral de Goiás, Sr. Manoel Antunes da Fonseca, no local onde, até então, existia uma pequena capela.
 


REFERÊNCIAS 
 
Lima, L. N. M. de. (2012). A procissão do fogaréu na Cidade de Goiás - identidade, cultura e território: o turismo e as novas tendências. Boletim Goiano de Geografia [Revista da Universidade Federal de Goiás/UFG], v. 32, n.1, pp. 121-133. DOI: 10.5216/bgg.v32i1.18960. Recuperado de https://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/view/18960
 
Mendonça, B. S. C. de. (1981). A Música em Goiás. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
 
Rodrigues, M. A. C. S (1982). A Modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
 
Rosa, R. L. (2016). Dor e sacrifício [manuscrito]: o imaginário católico vilaboense. (Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia). Recuperado de  http://tede2.pucgoias.edu.br:8080/bitstream/tede/3587/2/RAFAEL%20LINO%20ROSA.pdf
 
Silva, M. M. (2011, jun.). As festas populares e a “invenção” das tradições: uma reflexão sobre as Cavalhadas e a Procissão do Fogaréu em Goiás (1940-1980). Revista Patrimônio e Memória [Universidade Estadual Paulista - UNESP], v.7, n.1, pp. 212-230. ISSN 1808-1967. Recuperado de http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/191
 


Comentários

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  • 11.11.2021 09:18 Nícolas Custódio

    É de suma importância relatar e conservar tradições que demarcam a origem de um povo e/ou lugar. Infelizmente a pandemia, além de todas as problemáticas, fez esfriar eventos tradicionais e que dependem de iniciativas vorazes de seus participantes para que continuem acontecendo ano após ano, visto que há uma tendência, nos dias de hoje, de cada vez mais abandonar as tradições. A Procissão do Fogaréu precisa ser nutrida e conservada, não apenas por seu caráter antigo, mas pela qualidade musical, teatral e festivo na qual é apresentada. Chamo a atenção para a vestimenta dos personagens, que causa grande efeito a quem está assistindo. Apesar de a Semana Santa ser uma programação de origem europeia, sem dúvidas o povo goiano se apropriou de seus eventos sentindo como se fossem nascidos em solo regional.

  • 29.09.2021 22:55 Amanda Ribeiro de Sousa

    A Procissão do Fogaréu é de grande importância para a cultura de Goiás, mas o que deixa a procissão mais interessante é a forma como o repertório musical foi adicionado. Em 1998 ocorre uma gravação de um repertório musical, esse que veio por meio de uma pesquisa mostra o grande legado que estava "escondido" por aí, e hoje toda música tocada na Semana Santa foi composta por goianos. Existe uma importância muito grande nessas informações, pois mesmo sendo uma programação de origem Europeia, a construção e preservação vem toda do povo goiano, entre outros. Um evento que leva turistas para uma programação de grande idealização e esforço, mas também de um grande legado da música goiana.

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Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

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