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Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

MÚSICA CLÁSSICA

Lully e o "cajado" da morte

| 18.09.19 - 15:29
Othaniel Alcântara Jr.


Jean-Baptiste Lully (1632-1687) é considerado um dos mais importantes compositores do Barroco francês (1600 a 1750, aproximadamente). Este texto pretende explorar três curiosidades referentes à sua biografia. A primeira delas é que o referido músico, na realidade, era italiano. Em segundo lugar, abordar alguns detalhes acerca da sua amizade com Luís XIV (1638-1715), o “Rei-Sol”, que lhe rendeu um imenso prestígio na sociedade de corte francesa. E, por fim, discorrer um pouco sobre a sua trágica morte.
 
O nome de batismo desse compositor era Giovanni Battista Lulli que, provavelmente, pertencia a uma família modesta. De acordo com os relatos históricos, o jovem florentino devia estar com 13 ou 14 anos de idade quando foi levado para a França, sob as ordens do cardeal Mazarin - ministro chefe da corte francesa. -, para servir Anne Marie Louise d´Orléans (1627-1693), prima-irmã de Luís XIV. Além de auxiliar mademoiselle de Montpensier, como seu copeiro e professor de italiano, Lully completou sua formação artística, tornando-se, posteriormente, violinista, compositor, bailarino e coreógrafo daquela corte.
 
É provável que Lully tenha iniciado sua carreira profissional, aos 17 anos, como violinista no conjunto instrumental intitulado Os 24 Violinos do Rei. Também integrou o quadro de artistas dos tradicionais balés dramáticos encenados na França. Neste caso, dançando, coreografando e, a partir de 1653, compondo para as representações musicadas, muitas delas em parceria com o dramaturgo francês Molière (CANDÉ, 2001, p. 473).

Ademais, Lully e Luís XIV iniciaram uma sólida amizade no início dos anos 1650. Por algum tempo, os dois jovens foram colegas no balé de corte que, à época, além de arte e entretenimento era costumeiramente usado como uma das eficientes engrenagens da “máquina de propaganda política” comandada pelo primeiro-ministro Mazarin. Aliás, a alcunha “Rei-Sol” surgiu quando, em 1653, o monarca, aos 14 ou 15 anos, fez o papel de Apolo - deus do sol na mitologia grega - que, em sua juventude, havia matado a gigantesca serpente Píton (FRANKO, 2015, pp. 77, 79, 83 e 86; NUNES, 2015, pp. 54 e 107). Num sentido metafórico, essa foi uma demonstração de poder diante das possíveis desordens e/ou dos inimigos da França.
 
A amizade com Luís XIV abriu portas para Lully, em Versalhes. Ainda em 1653, o músico, então com 20 ou 21 anos, foi designado para o cargo de “Compositor da música instrumental do rei” e escolhido para liderar pela Banda1 Les Petits Violons (os pequenos violinos). Em 1661, foi nomeado “Superintendente de Música” e regente dos Vingt-Quatre Violons du Roy (Os 24 Violinos do Rei), considerado o conjunto mais prestigiado da Europa no século XVII e início do século XVIII. 


 
Jean-Baptiste Lully (1632-1687)
Por: Paul Mignard
Fonte: commons.wikimedia.org


 
 
Em 1672, com o apoio do rei, Lully consolidou seu monopólio sobre as representações musicadas, ao comprar o “direito” de explorar a falida Academia de Ópera (CANDÉ, 2001, pp. 473 e 474; SPITZER; ZASLAW, 2014, pp. 72 e 77). É relevante dizer que, a partir de então, essa Instituição passou a se chamar "Academia Real de Música" e, tempos depois, "Ópera de Paris".
 
Seguindo a linha de atuação política de Luís XIV, de cunho absolutista, Lully imprimiu um rigoroso regime de disciplina aos músicos sob sua liderança. Costuma-se dizer que o modelo de organização implantado nos 24 Violinos do Rei (de 1661 a 1687, ano de sua morte) e na “orquestra” da Ópera de Paris, proveu a matriz em torno da qual a orquestra moderna foi estruturada (BARCLAY, 2005, p. 26; CANDÉ, 2001, p. 501; CARTER; LEVI, 2005, p. 26; GROUT; PALISCA, 2001 p. 415; HOLOMAN, 2012, p. 03; SPITZER; ZASLAW, 2004, pp. 32, 69 e 72). 
 
 
A fatalidade
 
Antes da invenção da batuta (século XIX), houve diferentes formas de se reger um grupo musical. Jean-Baptiste Lully, por exemplo, no século XVII, iniciou um costume de bater um bastão (uma espécie de cajado) no chão para marcar o ritmo durante uma performance. Tal prática seria seguida por outros músicos na França, motivo pelo qual ficariam conhecidos pelo termo batteurs de mesure (encarregados de “bater o compasso”).
 
Todavia, essa técnica de regência “ruidosa” tornou-se fatal para Lully. Por ocasião da apresentação de um Te Deum, composto para celebrar a cura de uma doença do monarca Luís XIV, o maestro acabaria atingindo fortemente o seu pé com a sua “ferramenta” de trabalho. Em seguida, em decorrência de uma forte infecção, contraiu gangrena. Não há consenso entre os historiadores de música sobre o que aconteceu após esse terrível acidente. Para alguns autores, Lully teria se recusado a amputar o pé, falecendo poucos meses depois do trágico concerto. Para outros como Lebrecht (2002, p. 26), o compositor teria passado por “várias amputações”, morrendo “em prolongada agonia”.

 
A tragédia de Jean-Baptiste Lully
Cenas do filme "Le Roi Danse" (2' 06'')

 

NOTA:

1) Banda/Band/Bande: "Esse termo foi utilizado amplamente para designar as orquestras da corte de Luís XIV. É legado pela tradição de agrupamentos musicais que uniam instrumentos de diferentes características sonoras, chamados de bandes, as bandas [...]. O vocábulo passou a representar a orquestra francesa no século XVII". (Prust, 2019, p. 22).


Jean-Baptiste Lully (Surintendant de la Musique du Roy)
Ao fundo: um grupo de músicos da corte do Rei-Sol.
Fonte: alamy.com



Leia também:

Os 24 Violinos do Rei (postado em 20/4/2019)

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A família francesa do violino (postado em 9/3/2020).

“O que é uma orquestra?” (postado em 14/3/2019).   

Conjuntos pré-orquestrais (postado em 22/3/2019)
 
A “Orquestra” de Monteverdi (postado em 4/4/2019)

A batuta (postado em 23/5/2019) 

Atribuições do regente de orquestra (postado em 12/7/2019)

O violino e sua representação no Renascimento (postado em 12/7/2019)

O violino e suas origens (postado em 2/8/2019)


Referências:
 
BARCLAY, Robert. The development of musical instruments: national trends and musical implications. In: LAWSON, Colin (Ed.). The Cambridge Companion to the Orchestra. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. 
 
CANDÉ, Roland De. História Universal da Música. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 
 
CARTER, Tim; LEVI, Erik. The history of the orchestra. In: LAWSON, Colin (Ed.). The Cambridge Companion to the Orchestra. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 313.
 
FRANKO, Mark. Inversões figurais do corpo dançante de Luís XIV. Tradução de Ana Teixeira e Marcelo Fernandes. Dança: Revista do Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, v. 4, n. 1 pp. 76-95, jan./jun. 2015.
 
GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 2001
 
HOLOMAN, D. Kern. The Orchestra: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2012.
 
LEBRECHT, Norman. O Mito do Maestro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002.
 
NUNES, Bruno Blois. As danças de corte francesa de Francisco I a Luís XIV: história e imagem. Pelotas/RS, 2015, 125p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pelotas.

Prust, M. T. (2017). Le roi des instruments : a constituição da família do violino da França e seus usos na corte de Luís XIV de 1653 a 1687 (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
 
SPITZER, John; ZASLAW, Neal. The Birth of the Orchestra: history of an institution, 1650-1815. New York: Oxford University Press Inc., 2004.

Comentários

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  • 01.02.2024 15:19 Amanda Silva Cordeiro

    Achei particularmente engraçada a forma como Lully, que era o favorito do Rei Luís XIV, o Rei-Sol, morreu de forma trágica e irônica, ao ferir o próprio pé com o cajado que usava para reger a orquestra. O ferimento infeccionou e se espalhou pelo corpo, levando o músico à morte por gangrena. Chega a ser até irônico. O texto é bem humorado, misturando fatos históricos com ficção e ironia, apresentando Lully como um personagem ambicioso, vaidoso e arrogante, que acabou pagando caro por sua soberba.

  • 28.01.2024 18:44 Gabriel Costa Paz

    Quem diria que o mestre do Barroco francês tinha raízes italianas e iniciou sua carreira como copeiro e professor de italiano? A amizade com o "Rei-Sol" Luís XIV parece ter sido uma trampolim incrível para sua ascensão na corte, transformando-o de violinista a líder dos prestigiados Vingt-Quatre Violons du Roy e a história trágica da sua morte, causada pela regência "ruidosa" que se tornou sua perdição, é como algo saído de um drama musical. A ironia de um compositor tão grandioso ser levado por sua própria batuta é de arrepiar.

  • 27.01.2024 00:39 Kaic Toledo Camilo

    Professor, o compositor Jean-Baptiste Lully (1632-1687), figura proeminente do Barroco francês, iniciou sua carreira como violinista nos "Os 24 Violinos do Rei," destacando-se posteriormente como compositor e líder musical na corte de Luís XIV. Sua sólida amizade com o monarca possibilitou ascender a importantes cargos, incluindo o de regente dos "Vingt-Quatre Violons du Roy" e a aquisição da Academia de Ópera. Contudo, sua vida culminou em tragédia ao introduzir uma técnica peculiar de regência, resultando em um ferimento no pé durante um concerto. A subsequente infecção por gangrena conduziu à sua morte, com controvérsias sobre sua recusa à amputação, mas todos concordam que encerrou seus dias em agonia após o fatídico evento.

  • 25.01.2024 17:08 Arthur Borges Taveira

    O texto explora três aspectos da biografia do compositor Jean-Baptiste Lully (1632-1687), destacando sua origem italiana, a amizade com Luís XIV e sua trágica morte. Lully, inicialmente levado para a França aos 13 ou 14 anos, tornou-se violinista, compositor e coreógrafo na corte francesa. Sua amizade com Luís XIV proporcionou-lhe prestígio em Versalhes, levando a nomeações importantes, como regente dos Vingt-Quatre Violons du Roy. Com o apoio do rei, Lully adquiriu o direito da Academia de Ópera, transformando-a na Academia Real de Música. Sua liderança rígida influenciou a organização das orquestras modernas. O texto também narra a fatalidade de Lully ao ferir gravemente o pé durante a regência com um bastão, resultando em gangrena e morte. O desfecho do incidente é tema de divergência entre historiadores.

  • 23.01.2024 19:42 Orlando Torquato da Silva Neto

    O texto é uma exploração detalhada da vida e carreira de Jean-Baptiste Lully, um compositor e maestro franco-italiano que desempenhou um papel significativo na corte do Rei Luís XIV. Ele foi fundamental no desenvolvimento da ópera francesa e contribuiu para a música barroca. O texto destaca a amizade de Lully com Luís XIV, sua ascensão na corte francesa e seu papel como violinista, compositor, bailarino e coreógrafo. Além disso, o texto aborda a trágica morte de Lully, que ocorreu devido a uma lesão no pé durante a regência de uma de suas óperas. Essa abordagem fornece uma visão detalhada e interessante da vida e morte desse influente compositor.

  • 15.01.2024 15:47 Filipe Castro Saraiva

    Graças a sua amizade com o rei, Jean-Baptiste Lully conseguiu grande reconhecimento por seus talentos musicais e até hoje ainda é considerado um dos compositores mais importantes do período barroco. Por ser um regente um dos costumes da época, a utilização de um bastão para ficar batendo no chão fazendo a marcação do ritmo, acabou causando o falecimento do músico, por ter acertado seu pé em uma apresentação. Esse infeliz acontecimento pelo menos mostrou a ineficiência da ferramenta e gerou motivações para mudanças.

  • 14.01.2024 21:18 Carlos Eduardo Neves de Sá

    O texto fala sobre Jean-Baptiste Lully, um italiano que foi para a França servir na corte de Luís XIV. Ele era violinista, compositor e amigo próximo do rei. Lully liderou os 24 violinos do rei, sendo fundamental na música da época. Sua morte trágica, associada ao bastão de regência, destaca a ironia de grandes artistas morrerem enquanto fazem o que amam, como Lully, que morreu durante uma apresentação que celebrava a cura de Luís XIV. A leitura do texto é muito interessante por trazer pontos de vista que dificilmente são abordados, remodulando completamente nossa visão sobre a história da música.

  • 10.01.2024 20:43 Giovanna Teodoro Melo Pereira

    Lully faleceu em detrimento de sua arte, aquilo que o deu vida também foi o que a tirou. Seus melhores e piores momentos foram em torno do seu trabalho, desde sua ascensão (com grande impulso de Luís XIV) até sua trágica morte.

  • 07.01.2024 14:26 Matheus Henrique Bernardes Daniel

    A história de Jean-Baptiste Lully é bem peculiar. O texto nos mostra o quanto a história de uma pessoa pode se ligar a de outra e ser sobreposta. Lully era italiano, de família humilde e foi levado com 13 anos para a França para servir uma prima-irmã de Luís XIV, o famoso rei Sol. Ao se conhecerem por fazer parte do balé da corte juntamente com Luís. Sua história demonstra muito talento já que foi violinista, compositor, bailarino e coreógrafo da corte francesa durante o reinado do Rei Sol. É interessante imaginar como a amizade dos dois se tornou algo de valor para Luís que o colocou como compositor da música instrumental do rei e mais tarde como superintendente de música e regente dos 24 violinos do rei, o mais prestigiado conjunto musical em toda Europa no séc XVII e parte do XVII. Lendo o texto é possível perceber que Lully absorver e reproduziu parte do comportamento absolutista de Luís XIV, com sua rigorosidade de ensaios e disciplina sobre os músicos que liderava, tanto que a forma que organizou os 24 violinos do rei e a orquestra moderna de Paris é precursora da orquestra moderna. Mais curioso ainda é sua morte estar associada ao seu bastão de regente, usado com a mesma função que a batuta tem, de coordenar o grupo musical, é trágico que tenha morrido durante uma peça que celebrava a cura de Luís XIV de uma doença. Aparentemente grandes artistas morrem fazendo o que amam.

  • 05.01.2024 00:18 Isabela Moreira Bianchi

    É sempre fascinante conhecer e aprender mais sobre uma figura notável na história e, dessa vez, a pessoa em questão foi o italiano Jean-Baptiste Lully. Descobrimos que ele, desde jovem, demonstrava um gosto e um talento para as artes, sendo um violinista, um compositor e um bailarino exemplar. Além disso, sua amizade com o rei-sol proporcionou uma grande ascensão em sua carreira musical. No entanto, seu sucesso teve um trágico fim após ele acertar o próprio pé com o instrumento de trabalho. Posteriormente, o acidente ocasionou sua morte — embora os reais acontecimentos não tenham sido bem esclarecidos.

  • 03.01.2024 17:22 Janaina Sacramento Rocha

    Que fim trágico levou Lully, em sua vida e carreira musical. Como o próprio texto traz Lully compunha para o rei Luís XIV, fator esse que lhe trouxe prestígio em sua carreira profissional. Além de violinista Lully também era bailarino, compositor e coreógrafo da corte do rei, conforme traz o texto. Apesar de seu fim trágico, Lully é considerado um dos mais importantes compositores do Barroco francês, apesar do mesmo ser italiano. É interessante saber o quanto os músicos daquela época dispunham de diversos talentos e habilidades como é o caso de Lully.

  • 18.12.2023 08:18 Jordanna Coelho Neves

    Vemos que Jean-Baptiste Lully foi um compositor e maestro franco-italiano que se tornou uma figura proeminente na corte do Rei Luís XIV, sendo fundamental no desenvolvimento da ópera francesa e contribuiu significativamente para a música barroca. Além de suas composições musicais, Lully também se destacou como um habilidoso dançarino e coreógrafo. Mas sua vida foi interrompida tragicamente por uma lesão no pé durante a regência de uma de suas óperas, levando à sua morte. O que leva a dúvidas como: por que ele bateu tão forte? Ele não teria treinado as batidas e o local no chão onde iria bater? Havia uma ponta no instrumento? Imediatamente após o acidente não foi tomado providências? Enfim, um fim trágico.

  • 17.06.2020 20:29 orlando

    Mas tinha que ser um bastão pontudo na ponta? rs Que trágico fim

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Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

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