Othaniel Alcântara Jr.
Goiânia - Não há como precisar uma data na qual tenha surgido efetivamente a orquestra, considerando o sentido* moderno do termo. A maioria dos pesquisadores da área de música concorda que a origem da orquestra, como instituição, deu-se em um certo momento do século XVII, a partir de alguns agrupamentos musicais predecessores**, característicos do Renascimento e do início dos anos Seiscentos. Cumpre lembrar que, em geral, os instrumentistas profissionais daquela época eram contratados, quase sempre de forma temporária, para o acompanhamento de obras vocais sacras ou profanas. Também é relevante frisar que tais serviços eram custeados pelas igrejas, ou pelas cortes ou, ainda, por mecenas burgueses.
No entanto, costuma-se dizer que foi a partir das encenações de La Favola di Orfeo (1607)***, composta por Claudio Monteverdi (Cremona, 1567 - Veneza, 1643), que o termo “orquestra” começou a adquirir o seu significado moderno (STANLEY, 2006, p. 34). Afinal, a instrumentação dessa Ópera contou com 36 instrumentos***, uma quantidade jamais vista, até então, na execução de uma peça. Contudo, aquele grupo reunido, de forma temporária, em 1607, se comparado ao padrão utilizado, por exemplo, pelos compositores do período Clássico, já se mostrava bastante diferente em vários de seus aspectos composicionais. É pertinente que pelo menos dois desses aspectos sejam mencionados: a definição do tipo (nomenclatura) de instrumento para a execução de uma peça e o papel exercido por ele dentro de seus respectivos universos estilísticos.
Ao longo do século XVII, tornou-se comum a formação de conjuntos instrumentais na maioria das grandes cidades e cortes europeias. Porém, é correto afirmar que, no decorrer dos Seiscentos, não existiu um padrão definido quanto ao tipo e quantidade de instrumentos empregados nesses grupos musicais. Sobre isso, em conformidade com as análises do pesquisador Neylson Crepalde, as escolhas dos compositores ocorriam, muitas vezes, em função da textura desejada para uma obra específica. E, embora já existisse a tendência de reunir os instrumentos em famílias, essas escolhas variavam de acordo com o estilo de uma região ou país (CREPALDE, pp. 14-15). Além disso, esses agrupamentos, por um bom tempo, desenvolveram repertórios diferentes e práticas de performance distintas.
Nesse cenário, destaca-se o grupo de cordas (com arco) intitulado The Vingt-quatre Violons du Roy, uma “orquestra” mantida pela corte francesa durante quase todo o século XVII e parte do século XVIII. Um grande número de pesquisadores, especulando sobre este tema, aponta os “24 Violinos” como sendo o primeiro conjunto instrumental “permanente” formado exclusivamente por instrumentos da família do violino (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), ou seja, semelhante à seção de cordas das orquestras eruditas modernas.
Um integrante da Banda "Os 24 Violinos do Rei" (1577 a 1761).
Autor: Nicolas Arnoult (c.1650-c.1722).
Fonte: commons.wikimedia.org
Considerando a característica anteriormente mencionada, entre outros motivos, presume-se que o modelo de atuação adotado pelos Vingt-quatre Violons du Roy tenha fornecido a matriz em torno da qual a orquestra moderna foi estruturada (BARCLAY, 2005, p. 26; CANDÉ, 2001, p. 501; CARTER; LEVI, 2005, p. 26; HOLOMAN, 2012, p. 03; SPITZER; ZASLAW, 2004, pp. 32 e 69).
Da literatura revisada, apenas os musicólogos John Spitzer e Neal Zaslaw em The birth of the orchestra: history of an institution, 1650-1815, disponibilizam maiores detalhes sobre a origem e trajetória dos Vingt-quatre Violons du Roy. Para melhor compreender a trilha percorrida por esses autores, torna-se necessário retroceder até a primeira metade do século XVI. Desde o reinado de François I (Francisco I), que ocorreu entre 1515 e 1547, já havia alguns músicos (instrumentistas e cantores) a serviço da corte francesa. Esses músicos, ao lado de dançarinos e atores teriam sido responsáveis pela diversão de sucessivos reis da França, a começar por aqueles da Casa de Valois (até 1589) e, posteriormente, pelos monarcas da Casa de Bourbon (SPITZER; ZASLAW, 2004, p. 72). Um desses agrupamentos, em particular, era formado, tão somente, por instrumentistas de cordas (com arco).
Respaldados por fontes documentais daquele tempo, os pesquisadores Spitzer e Zaslaw enfatizam que houve um aumento gradual na quantidade desses músicos durante a segunda metade do século XVI e início do século seguinte. Por fim, no ano de 1614, durante o reinado de Louis XIII (entre 1610 e 1643), a corte francesa já contava com os serviços profissionais de 24 instrumentistas da família do violino. Ao que parece, à época, os “24 Violinos do Rei” foram considerados indispensáveis, principalmente nos ballets de cour, em recepções de visitantes e nos banquetes de estado.
Também singularmente interessantes são alguns dados encontrados em documentos contábeis, datados de 1618, pertencentes à corte francesa. Tais informações dizem respeito a pagamentos efetuados em nome dos Vingt-quatre Violons du Roy como um corpo instrumental, sugerindo que tal conjunto, àquela altura, já havia adquirido existência administrativa. Foi fundamentado nesses dados que os musicólogos Spitzer e Zaslaw (2004, p. 73) concluíram que o grupo conhecido pela alcunha de “24 Violinos do Rei” existiu como um corpo de músicos organizado desde, pelo menos, o ano de 1618.
É importante esclarecer que os integrantes do conjunto instrumental em questão, já na primeira metade do século XVII, mantinham uma existência profissional regida pelo modelo de associativismo, próprio da Confrérie de St-Julien des ménestriers, uma irmandade de músicos parisienses. Entretanto, certamente foi o patronato real que possibilitou aos “24 Violinos do Rei” o aprimoramento de práticas de repertório e performance que se tornariam decisivas no desenvolvimento da música europeia.
Quanto ao aspecto da formação instrumental, o número de integrantes dos “24 Violinos do Rei” permaneceria praticamente inalterado entre os anos de 1618 e 1761, quando foi oficialmente dissolvido. John Spitzer e Neal Zaslaw (2004, p. 76) compilaram alguns dados de fontes documentais encontradas até a finalização da obra The birth of the orchestra: history of an institution (1650-1815) e elaboraram um quadro com a formação oficial desse conjunto, entre os anos de 1636 e 1718. Nota-se, por exemplo, na tabela abaixo, que durante a opulenta corte de Louis XIV (1638-1715) em Versalhes, entre os anos de 1643 a 1715, o número total de músicos se manteve 24, excetuando-se o ano de 1692.
Fonte: Spitzer e Neal Zaslaw (2004).
Esta tabela elaborada pelos investigadores Spitzer e Neal Zaslaw (2004, p. 76), a partir do exame de fontes documentais revela que, na maioria das vezes, a partitura encontrava-se dividida em 5 partes, ou seja, em 5 melodias diferentes. Ainda sobre a tabela, é pertinente explicitar que a parte mais aguda (Dessus) era feita pelos violinos, as partes intermediárias (Haute contre, Taille e Quinte) por três subgrupos de violas (cada grupo com uma parte diferente), cabendo aos instrumentos mais graves (violoncelos ou baixos) a parte restante.
Já em relação à escrita instrumental, outra inovação considerável pode ser detectada na atuação dos “24 Violinos do Rei”. Diferente, por exemplo, da partitura de La Favola di Orfeo (1607)***, de Monteverdi, quando cada instrumento de uma família, ou de um ensemble, executava partes diferentes, os componentes dos subgrupos da “orquestra” francesa interpretavam uma parte em comum (HOLOMAN, 2012, p. 03; LAKI, 2005, p. 46).
O campo de atuação dos Vingt-quatre Violons du Roy não se restringia às dependências do palácio francês. Pelo contrário, esta orquestra “protótipo”, semelhante ao núcleo de cordas das atuais orquestras eruditas (câmara ou sinfônica/filarmônica) poderia ser apreciada também em festividades e eventos públicos nos arredores de Paris. Neste caso, exerciam uma importante função: exibir a grandeza do rei francês e a magnificência de sua corte para o resto do mundo (SPITZER; ZASLAW, 2004, pp. 32, 73-74).
Outro aspecto interessante a ser abordado remete-se ao status dos músicos integrantes dos Vingt-quatre Violons du Roy. Como mencionado anteriormente, tratavam-se de músicos nomeados, semelhante a qualquer outro funcionário da corte francesa. Mas, ao contrário do que pode ser verificado em outras épocas e lugares, os membros dos “24 Violinos do Rei”, conforme atestam Spitzer e Neal Zaslaw (2004, pp. 32 e 75), conseguiram um considerável prestígio na sociedade parisiense. Seus cargos lhes conferiam títulos equivalentes, em português, ao de “homem honrado” ou ao de “burguês de Paris”. Além disso, tal colocação profissional proporcionava uma série de regalias. A título de exemplo destas, podem ser aludidas a isenção de impostos e a permissão para o uso de espada em público. Ademais, aquele posto, que poderia ser negociado (comprado ou vendido), abria portas para outras possibilidades profissionais na área musical, como o ensino e o comércio.
Para dimensionar a importância dos Vingt-quatre Violons du Roy, basta lembrar que o seu modelo de atuação (organização orquestral, prática de performance, repertório etc.) acabaria sendo imitado, ao longo dos anos, por outros artistas, em diversas cortes da Inglaterra, Alemanha, Áustria, Suécia e também da Itália Spitzer e Zaslaw (2004, pp. 69 e 73). Muito desse sucesso pode ser creditado ao trabalho do italiano Giovanni Battista Lulli (1632-1687), radicado na França como Jean-Baptiste Lully, que comandou o grupo entre os anos de 1661 e 1687, ano de sua morte. Mas, esta é outra história...
Referências Bibliográficas
BARCLAY, Robert. The development of musical instruments: national trends and musical implications. In: LAWSON, Colin (Ed.). The Cambridge Companion to the Orchestra. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CARTER, Tim; LEVI, Erik. The history of the orchestra. In: LAWSON, Colin (Ed.). The Cambridge Companion to the Orchestra. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
CREPALDE, Neylson. O maestro, a orquestra e a racionalização das práticas musicais. Belo Horizonte, 2015, 76p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais.
HOLOMAN, D. Kern. The orchestra: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2012.
LAKI, Peter. The orchestral repertory. In: LAWSON, Colin (Ed.). The Cambridge Companion to the Orchestra. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
SPITZER, John; ZASLAW, Neal. The birth of the orchestra: history of an institution, 1650-1815. New York: Oxford University Press Inc., 2004.
STANLEY, John. Música Clássica: os grandes compositores e as suas obra-primas. Lisboa: Editorial Estampa, 2006.