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Carol  Piva
Carol Piva

Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

BRASIL CENTRAL, PATRIMÔNIO DA GENTE

Pelo fim da cultura do estupro, ou então estaremos todos ninguém

| 01.06.16 - 13:52

Registro do Ato de Repúdio à Cultura do Estupro no Parque Lago das Rosas, Setor Oeste, Goiânia, no dia 29 de maio de 2016 (Foto: Carol Piva)

Julho de 2015, Hospital de Urgência de Teresina, Piauí,região Nordeste do Brasil. Na noite de domingo, dia sete, morria uma moça de dezessete anos. Com ou sem nome — Isabela, Sara, Luísa, Kênia, Daniela, Maria, Alice, Alzira. Ela. Uma moça. Com ou sem endereço, telefone fixo, contas a pagar, lutas e pelejas do dia a dia, pessoas com quem ainda ter encontros e desencontros, comemorações ou conflitos.Mais uma, como tantas. Ficou dez dias internada na UTI, corpo do jeito como socorreram — já todo espostejado.

A família em desvario, Quem é que entende uma coisa dessa, meudeus? 
A família, se a gente for pensar, reduzida-ali à estatística triste, irreparável, de família de vítima de uma muito — ultrajosa — covardia. Mais uma, como tantas. A moça, de hemorragias em toda ela, esmagamentos na face, com traumatismo torácico, craniano. Traumatismos. Sim, e inenarráveis. Ela mais três amigas, arremessadas de uma altura de cinco ou tantos metros. Espancadas e estupradas — as quatro. Por cinco. Cinco sujeitos de tremenda judiaria e de uma então-desvida, a dela, da moça, vez para sempre agora invisível. A ponto de a gente, assim-distante, só ouvindo falar, pensar até... O que pode ser pior que isso? Mas, daí logo, um assombro: chovem, nessas horas, canivetes de gente justificando, em procura de amenidades, dando desentendimentos.
 
Que isso e aquilo outro. Vai ver nem foi assim. Ou então vai que... que a garota... e, no fim das contas, até... A gente nunca sabe. Não é, não? Literalmente? Não. A gente sabe, sim. Além de literal, ocorrido como esse pode até ter inúmeras “subnomenclaturas”, se assim se preferir, e uma não é sequer melhor que a outra. Estupro. Violência contra a mulher. Crime hediondo (lei nº 13.104, sancionada em 2015). Assassínio. Trata-se de vida interrompida — mais uma, tão tantas — ainda no começo da vida. E vidas agora — das que ficaram para contar ou que nem-nunca terão coragem de contar coisa alguma — apinhadas de tanta coisa que judia: raiva, tristeza, muita tristeza, desonra, impotência diante da brutalidade, incompreensão, indignação.

Semana passada, maio de 2016, Rio de Janeiro, região Sudeste do Brasil. Moça de dezesseis anos, sobrevivente, violentada e exposta, ainda por cima escarnecida, terá agora que ultraexistir. Qual seria, afinal, sua outra-saída? Trinta homens. Trinta e três homens. Dopada, judiada por trinta e três homens. Estuprada, teve a vida posta a um fio por trinta e três homens. Trinta e três. Mas nesse caso quantidade (de violências ou violentadores?) lá-importa? Importa, sim. Importa muito, importará tão sempre. Porque, no mínimo, escancara a barbárie de uma violência... estarrecedora. Para dizer pouco, porque faltam até palavras classificatórias em hora assim. Mais uma vez, no entanto, elas existem. Não é “brincadeira de mau gosto”, nem “vingança”, tampouco “atitude passional”, nem mesmo “constrangimento de vulnerável”. Não é sequer “sexo”, que dirá “sexo com consentimento”, como já ouvi papagaios tentarem pasteurizar por aí. É estupro. É privar alguém de consciência e liberdade. É violência praticada à sorrelfa de um-tal requinte de crueldade, pela submissão de uma moça, sem direito de se defender, a tratamento degradante, que penso ser preciso a gente dizer também outro nome-bem- próprio — tortura. Estupro. Crime hediondo. Inadmissível.

Domingo à noite, dia dezessete, janeiro de 2016, Parque do Ibirapuera, São Paulo, região Sudeste do Brasil. Moça de dezoito anos, com a vida dali em diante espatifada, estuprada durante uma hora, em canto qualquer do parque, por seis homens. Ao chegar à Delegacia de Polícia para registrar o ocorrido, em choque, no mínimo, teve que ouvir de policiais o mesmo — aviltoso — atentado, em disfarce de “brincadeirinha”, “mas será que”, “pois a senhorita estava alcoolizada”, “assim também fica difícil, né, moça”, “tem certeza de que não deixou mesmo?”, “sabe-se lá”. Isso também tem nome. É a solércia de um discurso e de uma prática que pressupõem a mulher vítima de violência — qualquer violência, e tanto mais no caso de estupro — como facilitadora, provocadora, ou qual o quê. E então jogam nela pedras-à- Geni.
 
Os episódios, Brasil afora, se quincentuplicam. As violências, a olho nu, são mesmo inenarráveis, parecem até invisíveis... Minas Gerais, uma agressão contra a mulher a cada 4 minutos. Ceará, os cerca de 400 processos por ano de violência contra a mulher contrastam, assustadoramente, com parcas punições. Goiás, terceiro Estado brasileiro no ranking de homicídios de mulheres. Mato Grosso do Sul, segundo no número de denúncias. Brasil, 2015, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e o então desalento: declarada, uma vez mais (e infelizmente), a velada cultura de um machismo que contribui para que a violência contra a mulher seja prevalente. Apesar de brutal. Diante de uma redação por escrever, houve (e foram muitos, não foram escassos, e eram candidatos... ao nosso ensino superior), pois-houve quem declarasse sua “mais profunda indignação” a respeito de um tema que convidava, e precisa ainda convidar muito, ao respeito à dignidade e aos direitos humanos.
 
É difícil, no fim das contas, acreditar no que evidenciou, tão lucidamente, o escritor Luiz Ruffato, esta semana, em seu texto no El País. Sim, é difícil acreditar que ainda exista alguém neste mundo a contemporizar com a aviltante “normalidade” que se pretende creditar ao fato de uma mulher a cada 11 minutos ser estuprada e, a cada hora e meia, morta no país. A Lei Maria da Penha (nº 11.340/06) — criada para coibir humilhações, espancamentos, assassinatos e considerada pela ONU uma das três melhores leis do mundo no combate à violência doméstica — ajuda, é claro, mas não é suficiente para conter a desgraceira toda a que é ainda submetida a mulher no Brasil. Faltam punições, sobram agressores. Falta — o que é tanto pior, e claro que não de todos, mas ainda de muitos — a decência de se reconhecer vez por todas o que se anuncia enfaticamente no cartaz que foi aqui trazido como imagem de abertura do nosso texto.
 
A fotografia foi tirada no último domingo, dia 29, em Goiânia. Parque Lago das Rosas, quatro da tarde, em encontro histórico na capital de Goiás, ao passo que outros atos aconteciam e estão ainda acontecendo em todo o Brasil. Por aqui, estávamos lá mulheres, homens, adultos e crianças, também com nossas miragens sobre o futuro, gostos e desgostos; vitórias, conflitos, pelejas; nossos telefones e endereços fixos e não fixos; a mesma angústia, afinal, a mesma luta.



Alguns discursos ecoando por aí ainda são ultrajantes, a gente sabe. Propagados na mídia, velados ou escancarados de consensos lúdicros, na boca de pessoas que não parecem falar sério sobre assunto tão sério — a violência contra a mulher, o estupro, a cultura do estupro, a defesa da dignidade feminina, o feminismo.
 
Tenho acompanhado sempre muitos dos que estão tendo lugar Brasil afora e ainda fora do país. Este em Goiânia foi incrível, emocionante, importantíssimo. Uma das coisas mais bonitas que ainda há é a capacidade humana de se indignar, propor saídas, vontadear e lutar por justiça. Fui para o ato com imagens e palavras reverberando na memória. Trechos de Simone de Beauvoir e Betty Friedan; versos de Ana Cristina César, Alice Ruiz e Lisa Alves; palavras da professora Regina Dalcastagnè sobre os territórios contestados e as vozes não autorizadas, mesmo no plano da ficção. Com as palavras ainda da escritora Helena Terra e da cineasta Leslee Udwin. Cenas inteiras do documentário She’s beautiful when she’s angry (2014) também iam comigo para o ato, em cantata bonita. Dirigido por Mary Dore, ativista norte-americana, o documentário vale muito a pena, é lindíssimo. Conta com depoimentos de outras ativistas, escritoras, feministas; traz à cena, nesta toada, o desvelar de uma série de discursos, práticas, propagandas et al. que propagam mesmo e vão ao encontro do respeito e do direito ao respeito.
 
Aos misóginos de plantão e a todos aqueles e todas aquelas que contemporizam com a brutalidade de uma postura esvaziada de sentido histórico, para dizermos bem-pouco, e que apregoam o que apregoam “contra o feminismo”, “contra a mulher”, “contra essa bobagem de dizer que há segregação por gênero, afe...”, a essas pessoas... nem batatas.
 
Volto a dizer: é difícil acreditar que ainda exista no mundo alguém que acredite, reproduza ou, bem por pior, dissemine e pratique o discurso de que o lugar da mulher é...


Eis o que temos que responder sempre. Não só todas, mas nós todos. Porque é o justo, o humano, é o mínimo.


 
* Créditos: todas as imagens são do Ato de Repúdio à Cultura do Estupro, Parque Lago das Rosas, Setor Oeste, Goiânia, 29 de maio de 2016. Fotos: Carol Piva.


Comentários

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  • 04.08.2016 10:24 Germano Viana Xavier

    Luta de só-início ainda, C.. Boniteza em-contínuos!

  • 03.06.2016 13:02 Helena Frenzel

    Bravo!

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Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

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