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Carol  Piva
Carol Piva

Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

Brasil central, patrimônio da gente

A audiência (3)

| 17.04.16 - 21:21
Goiânia - Cinco, seis horas da tarde, ânimos encalorando-se, instrução processual querençosa de seus disse-me-disses. E na sequência, qual vão do mundo: tinha gente já compadecendo do homem, que Zé-Carlim isso, e aquilo, embora antes muitos desacreditassem obstinando o caso como mera sandice...
 
— O depoente sustenta — era a doutora Lavínia quem anorteava — que, dali a pouco, quando alcançou o topo da maquinaria e criou coragem para olhar lá para dentro, viu, de princípio, duas pessoas bem altas, pulando de um lado para o outro, e eram uns pulos bem altos também, parecendo que esticavam o corpo todo como correia de elevador, por exemplo, de baixo para cima, bem rapidamente, indo e vindo, vindo e indo; que não sabe dizer se eram homens ou mulheres, seres inumanos ou o quê, mas ao que depois, recobrando o fôlego, ficou em certeza de serem gentes; que eles não diziam coisa com coisa, mas emitiam um som de pessoas, como uma fala mesmo, e tinham umas bocas enormes; que, a gente facilitando, eles iam com certeza engolir, dando a entender que engoliriam, sim, as pessoas inteirinhas, como até faz a sucuri, cobra que só em suas artimanhices.
 
Assim já era demais! A doutora agora, com certeza, ia interromper. Onde já se viu coisa mais descabida? E foram sendo instantes muito incompreensíveis no de fato. Dali em frente, quase já sem jurisprudência de motivo nem lugar, tomara ou não tomara — aquilo se acabasse.
 
— Pois veja, senhor Lúcio: chegamos a um ponto em que posso, por exemplo, excluir o feito com julgamento do mérito. Finalmente. Tenho já do que dar decisão à causa, com a devida clareza — os dois, observado e observadora, se acompanhavam, e a gente se perguntava: se des(entendiam)?
 
— Eu sabia que a senhora entenderia, é coisa muito simples até. Só acrescentando: não se pensasse, naquela ocasião, tapear sorte e olhar nem que fosse de mansinho, sem dar pista. Isso de gente pretendedora de engolir gente, doutora, deusnosso, que a gente nem sonhe se atrever, a senhora sabe?
 
— O que eu sei mais, senhor Lúcio, é que, nessas circunstâncias, a gente nem deve dar conversa, nem olhar muito, nem-não pode altear que consegue escapar ou o quê. Porque daí eles já engolem, né?
 
— Sim, senhora. Perfeitamente.
 
Nessa hora, a sala de audiências ficou mudificada. Tinha abilolado — a doutora? Qual o quê, então... como é que dava de atinar — ou fingir — que compreendia existência de... de... engolidores de gente?
 
Avisado, às pressas, que no possivelmente a meritíssima já se precipitava confusa, ou cansadíssima, entrava na sala, arfante, o diretor da Vara. No socorrimento necessário. Foi logo procedendo:
 
— Será que o melhor não é redesignar a audiência, doutora? Todo mundo descansa, falamos com umas pessoas, para tomar mais opinião sobre o feito... talvez fosse bom a senhora serenar um pouco...
 
— O caso é mesmo sem comparação... qual pirlimpsiquice, se a gente for pensar — a juíza, respostando ao diretor, agradeceu as corretas intenções, mas que poria fim à lide.  
 
Era que da vista do Seu Lúcio, que tinha visto dos olhos de Zé-Carlim, também a doutora parece que tinha visto direitinho, e claro que bem mais em-detalhadamente, com argúcia de entendedora, a tal máquina com as pessoas, como diziam, engolidoras de gente
 
— Pois precisamos enxergar, fim das contas, que o senhor José Carlos guerreava, sim, todos os dias, com a tal máquina. E muito também com máquinas quais — guerreamos todos. De então que fica tudo mais claro agora... e é na Justiça do Trabalho que-mesmo se corrige isso, tenho dito, quando há algum tipo-qual de judiaria.
 
Eram engolidores como tantos-esses que chegam perto das pessoas, ou às vezes até de longe, teledistâncias como as de hoje em dia, temos de considerar, e seja quem seja a gente, se há no mínimo um tico de abertura para o agravo, acontece mais ou menos assim: provindo-ali de máquinas como aquela ou onde estiverem, os engolidores abrem a boca, uma bocona de residuar o sonho e o suor da gente, e zás! — lá se vai indo, quando menos se atina, a pessoa inteirinha... engolida.
 
— Tome nota, por favor, Maria Ismênia — ditava a doutora à digitadora de audiência, e as pessoas carcomiam já a pontinha dos dedos, de tanta agonia. — Condeno a empresa a ressarcir as horas de suor exacerbantes dos limites da lei, bem como os dias todos de lucidez e sonhos subtraídos, em jornada regular e/ou extrajornada, do senhor José Carlos. Determino às partes que comprovem nos autos, com documentos a serem juntados no prazo de cinco dias, os relatórios...   
 
... Enfins. Se entendiam ou não tinham, fato foi que ninguém se atreveu a dizer palavra de oposição. Quando, ao final da audiência, os olhinhos das pessoas, embora de-silenciosos, pareciam em muita querença de saberem o porquê daquele sentenciamento e como tinha sido que... que..., ela bem disse:
 
— É para isso que a justiça tem de ser aquilo que-é-com. De longe. Enxergando. Precisamos. Para a gente e os da gente. Coisa-assim de esplendor — e punha a magistrada tino final à instrução, sob e não-sob protestos. Pois-que ficava posta em ata uma, dentre muitas, de suas mais justas resoluções...

Comentários

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  • 29.04.2016 06:48 Helena Frenzel

    As máquinas engolidos de gente estão dia e noite diante das pessoas e elas não conseguem enxergá-las. Palmas verídicas para essa fictícia juíza, muito bom o final! A única coisa que me deixa triste de verdade nesta nossa vida fictícia é perceber que essas máquinas, além de engolirem pessoas, engolem também metáforas... Seria bom se engasgassem com elas. Bom começo já era e no fim... Massa! ;-)

  • 17.04.2016 23:37 Germano Xavier

    No fim, a emoção dos corações justos. Linda e cativante história, C.!

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