Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 12º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Sobre o Colunista

Carol  Piva
Carol Piva

Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

Brasil Central, patrimônio da gente

A audiência (2)

| 10.04.16 - 17:32 Goiânia - O depoente — confiador naquilo que tinha testemunhado ou, no fundo-fundo, algo agastadiço — estava finalmente ali, parecendo satisfeito, de frente para a doutora Lavínia.   
 
— Senhor Lúcio, a testemunha deve dizer a verdade e somente aquilo de que tem certeza, está bem?
 
— Sim, senhora, meritíssima.
 
— Testemunha afirma: que trabalha há três anos como assistente de operador de caldeira para a reclamada, tendo o serviço transcorrido na mais coerente das normalidades dentro da empresa, sempre; mas que, de uns meses para cá, eis o desarrazoado, começou a ver muito bastantemente o senhor José Carlos se queixando todos os dias de enfrentar umas quatro ou cinco pessoas aproximadamente [ou coisas, ele salienta!] dali de dentro da máquina de moer grãos, hora a hora, sempre que ia fazer algum reparo; que essas pessoas [ou coisas] representavam um verdadeiro entrave ao trabalho dele; que ele aludia a elas como os engolidores de gente.
 
À medida que ia escutando, a doutora refalava as respostas do depoente à secretária de audiência, e esta digitava as sentenças todas num zás!
 
Assim que: no correr dos ponteiros, havia mais e mais gentes bisbilhando. Tempo que redemoinhava, num de fato, acredite-se. E a história ainda prometia.
 
Que, em razão disso — prosseguia-se na inquirição —, o reclamante vinha parecendo estar meio desnorteado, muito confuso das ideias, falando até coisas sem pé nem cabeça, quase que o dia todo...
 
— O senhor pode me dar um exemplo, senhor Lúcio?
 
— Sim, senhora. Teve um dia, desses pelando, sabe? Uma hora da tarde, e reparei que o Zé-Carlim estava parado, no meio do pátio, olhando para o sol. Detido. Daí que fui chegando perto, no devagar, para ter convicção. Talvez não fosse. Mas era. Eu disse, no súbito: “Rapaz, deixa disso que você vai é cegar as vistas. Olhando para o sol, qual o incentivo?, mas que treta!”. A senhora imagina o que foi que ele me respondeu, doutora?
 
— Que o reclamante lhe respondeu, em tom de muita seriedade: “Ah, Lúcio, o calado, o escuro, a casa, a noite”, e que foi só isso...
 
— Mas assim-como? — impetuou-se um dos advogados que acompanhava o depoimento. Também as pessoas começavam a achar que Seu Lúcio estava de invencionice. Desmiolice era aquela, hein?
 
— Que também não sabe dizer se ele já vinha assim perturbado antes, mas acredita que não, pois nenhum dos colegas de trabalho nunca-nem tinha comentado nada desabonador, tampouco duvidoso, em referência à pessoa dele.
 
Nessa hora, principiando já o falatório, murmurinhava com o preposto da empresa o doutor Mário Helvécio, um dos dois advogados-ali da Companhia.
 
— Não se preocupa, não, Seu Ricardo, porque a doutora decerto antevê o desenlace todo já. Que, no caso, trata-se de um tremendo disparate, a gente bem-sabe...
 
— O senhor acredita que ganhamos, então?
 
— Tenho uma muita convicção disso. E ainda penso que, insistindo o Zé-Carlim nessa ladainha sem sustentação, ela até aplica uma litigância de má fé nele, senão vejamos! 
 
Era, de fato, uma complicadura. Fosse outro juiz, por exemplo, e muito provavelmente ele sequer tinha dado a entender que escutaria o testemunho de quem quer que fosse ali dizer sobre... sobre... gente engolindo gente? Ah, isso já passava era de um despautério! Não sem razão que todo mundo pensasse qual coisa. E foi quando a história, de episódios assim-nada-tão-muito-espetaculares até ali, começava a desbaratar, apresentando reviravoltas:
 
— Mas, se for assim para dizer de tudo, doutora juíza, a senhora não vai nem acreditar no que eu tenho para contar aqui nessa sala...
 
— E isso seria o quê, senhor Lúcio?
 
— Porque teve um dia que eu mesmo vi dois desses engolidores, eu juro para a senhora que vi, e foi em carne e osso, bem do jeitinho que o Zé-Carlim dizia deles para mim — o homem, testemunha-chave, punha lenha na fogueira. Mais ainda. E as pessoas comparecentes se encaravam levando um bom susto, ora, mas será que ele...?
 
— Ah, tenhassantapaciência, agora passou dos limites... Pela ordem, meritíssima! — se inconformava o principal advogado da empresa, doutor Gilmar Farias Braganti, profissional desses corretíssimos, a gente conhecia, apegado aos fatos e com justiça deles. Era defensor quase sempre das reclamadas e, ali, no atrapalhado do momento, embora fosse homem dos mais contidos e serenos, fez primeiro que ia bater na mesa, parecia muito irritado. Depois, decerto que pensou melhor, entrevendo que a doutora com razão embraveceria, deu de segurar o suposto estouro, mas... transparecia estar ainda renitente.  
 
— Muito bem, senhor Lúcio... Quer dizer que o senhor chegou a ver os tais engolidores de gente? — insistia a doutora Lavínia.
 
— Vi dois deles, sim, senhora.
 
— Então o senhor, por gentileza, poderia me relatar a história inteira. Vez por todas? E direito, bem do início. É possível?
 
A audiência já durava mais de hora. As pessoas davam a entender que estivessem na angústia de uma solução para o caso.
 
— Ah, esse tal Lúcio está é de procrastinação barata, uai — uns torciam escancaradamente, outros faziam aposta em silêncio, só esperando. Era curiosidade, naturalmente. Mas também indignação querendo saber por que a doutora juíza dava tanta delongada conversa a uma testemunha tão... tão...
 
— .... Escorregadia! — cogitava-se.
 
— É, e pensa só que é de saltar aos olhos que esse Lúcio está de tramoia, mas será o benedito? — também outro, complementando, intervinha.
 
Do lado de fora, começavam a se amontoar gentes que tinham ouvido falar que alguém tinha contado que. E estava montado o rebuliço. À qual altura que o senhor Antônio Cândido de Andrade, diretor de Secretaria e braço direito-e-esquerdo da doutora Lavínia, entrou na sala, resoluto de falar com a juíza. Coisa das mais urgentes. Tinham ligado de Belo Horizonte havia pouco, um dos assessores do desembargador-presidente, que se pôs à disposição da senhora para o que for preciso, a senhora imagine? Porque ocorria de a reclamatória do senhor José Carlos, o Zé-Carlim — e sobretudo a hipótese de haver em Araguari uma empresa que engolia pessoas — ter chegado aos ouvidos até de um dos ministros do tst, doutora, a senhora já pensou, um dos ministros do tst...
 
— Mas do tst, Antônio, como é que é isso, mas já?
 
— Que-sim, e também estão dizendo — reiterava o diretor — que lá no Tribunal o Ministério Público já tomou conhecimento da lide, doutora, como é que procederemos agora, deusdocéu?
 
 (As)sim: de interiorano e reservadíssimo, o evento, que tinha tudo para ser fanfarrice pura, espetacularizava-se. Foi ganhando projeção. Desdobrando sentido. 
 
A rua, por seu turno, ia enchendo de automóveis. Gente de bicicleta também se achegava. Pedestre tinha que não faltava mais. A dona da padaria quase-de-frente atinou de quintuplicar a fornada de pão de queijo, das mais requeridas especialidades da casa, que então o assistente mandasse buscar mais polvilho e pó de café, fosse o caso, porque de logo ia ter gente ali que não acabaria mais...
 
E foram encostando do lado de fora dois carros noticiadores: um era da tv Anunciação, emissora-líder da redondeza; o outro, do Diário Araguarino, jornal de ponta, principal na cidade, que, lendo ou não lendo, as pessoas pelo menos conheciam. E os repórteres cismaram de entrar na sala, como se tomando conta do espaço, até bem invasivos. Nossassenhora!
 
Ligaram a câmera, fazendo sequer questão de permanecer discretos. Também eles estavam nervosos, coitados, querendo tomar ciência do ocorrido, e foi que um dos quais atabalhoou de tagarelar bem ali, no meio da sala, quase em notório desjuízo:    
 
— Estamos aqui diretamente do Fórum Trabalhista de Araguari, onde tivemos a informação de que está finalmente depondo a favor do senhor Zé-Carlim, empregado da Companhia Mineira de Sementes, a testemunha Lúcio Ogando de Assis, recém-morador de nosso município e também funcionário da empresa. Testemunha-chave no processo dez-cento-e-dezesseis-de-dois-mil-e-quatorze, pêjotaé, Seu Lúcio é quem fornecerá a prova capital, segundo fontes seguras que obtivemos, de que a companhia mantém em suas dependências mais de dúzia de pessoas... de pessoas... engolidoras de gente...
 
Pois era o que faltava...
 
Com a cautela de sempre e sem nenhuma alteração de timbre — embora estivesse, é obvio, incomodada com aquele disse-me-disse sem fim —, doutora Lavínia desfazia em três tempos a algazarra. Que aguardassem o término da audiência no corredor. Nada mais.
 
— Mas, doutora, qualquer um aqui sabe, temos o direito de permanecer na sala, a audiência é pública, a senhora não pode...
 
— É pública, mas não vou permitir que se transforme em publicidade barata, meus senhores. Que me conhecem já, né? Façam o favor de se retirarem da sala de audiência! Ou decreto segredo de justiça neste ato e mando de-já irem prestar esclarecimentos na Delegacia! Por desacato e perturbação da ordem processual, no mínimo! Ora-se-não...
 
Bastava. Era prioridade: a instrução necessitava prosseguir. E que fosse sem mais interrupções, palpitatórios, et al.
 
— O senhor estava me contando, então, como eram os tais engolidores de gente, correto? — o tom da doutora era agora bem mais exigível.
 
— Sim, senhora, meritíssima. E foi assim...
 
— Que estava, um belo dia, fazendo gozo de seu intervalo para refeição e descanso, quando viu o senhor José Carlos sair correndo do pátio onde ficava a máquina trituradora das sementes, por cuja manutenção o reclamante, Zé-Carlim, coitado, era o principal responsável; que, na ocasião, se lembra de estar sentado bem na pontinha da cadeira, com joelhos e pés juntos, vestimenta simples, mas bem limpinha, por debaixo do uniforme da empresa; que o calor estava de matar e a gente até supunha fosse desmaiar a qualquer hora; que a cabeça, naquele dia, dava giro e mais giro, mas certamente se recorda com muita precisão de quando viu, mais ou menos ao longe, o senhor José Carlos vindo e vindo e vindo, descompassante, até meio irreconhecível.
 
— Fui correndo ao encontro dele, doutora. Ver se podia ajudar, ou qualquer coisa. O homem estava... Olhos quase infra-humanos, a senhora entende? Parecia ter visto fantasma. E-pois tinha...
 
— Como assim fantasma, senhor Lúcio? Não era engolidor de gente?
 
— Uai, doutora, a senhora veja: quando consegui finalmente que ele dissesse alguma coisa entendível, fiz que me levasse até a máquina. Ele tremelicava. Inteirinho. Apontava o dedo para dentro. Sem cessar. Mandava que eu entrasse lá e então compreenderia. Mas daí, no minuto seguinte, pedia que eu não entrasse, jeito nenhum, sendo por bem que não, tinha o risco de eu ser engolido por eles e que pelamordedeus eu não fosse, nem-não, que eles... eles... “Mas eles quem, criatura?”, eu insistia.
 
E Zé-Carlim sacudia a cabeça, boca dele que não aguentava de tão tremebunda... Tudo foi ficando tenso... em bastantes...

(termina no próximo domingo)

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:
  • 29.04.2016 06:37 Helena Frenzel

    A melhor parte é sempre "o meio"! Agora quero mais do que nunca saber como termina ;-)

  • 16.04.2016 14:37 Germano Xavier

    Tá danado, Carolina! Que será quem, quem? Quem-quem-que?!

Sobre o Colunista

Carol  Piva
Carol Piva

Carol Piva é doutoranda em Arte e Cultura Visual na UFG e uma das editoras-fundadoras do jornal literário "O Equador das Coisas". Servidora do TRT de Goiás, tradutora e ficcionista. / carolbpiva@gmail.com

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351