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Cássia Fernandes
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Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

A economia do amor

| 21.12.15 - 12:22 A economia do amor (Foto: divulgação)

Goiânia - O técnico autorizado que Clarice chamou para consertar sua máquina de lavar tinha autoridade. Foi logo detectando o problema, seguro de suas habilidades, braços fortes, não desses músculos adquiridos em horas de marombagem na academia, mas bíceps e tríceps hipertrofiados em trabalhos forçados e pesados, mãozonas grossas de capinar lote e descarregar caminhão de cimento.
 
Aquele ali certeza que era bom pra tocar pneu do carro, resistência do chuveiro, manejar a furadeira e brocas. Sua caixa de ferramentas deveria ser das mais completas, recheada de chave inglesa, francesa, para todo e qualquer sortimento de fendas e apertos. Não iria apenas ficar olhando contemplativamente para porcas e parafusos, e declarando seu amor para elas, com receio de que se instalassem macabeamente o silêncio e chegasse a hora da estrela derradeira.
 
Duzentos reais nem era um valor exorbitante pelo serviço, que não durou mais do que 15 minutos, e Clarice quase o ouviu dizer com aquela boca polpuda, um fio caudaloso de suor escorrendo da testa até a barba cerrada, que a garantia era de 89 dias.
 
Pensou: é de um desses que preciso. Um tipo assim mais rústico, que engata de primeira, garra com força nas ferramentas e entende bem de fiações e lubrificamentos. Cogitou sorrir pra ele, oferecer um café, estender o assunto, começando a ouvir uma fricção de satisfaction. Porém, o botão do sonhador foi subitamente desligado.
 
“Quanto a senhora gasta de sabão em pó por mês? Minha ex-mulher gastava uma caixa em cada lavada. Depois que me separei, uma caixa dura meses. Bem melhor.”
 
“Sei não.”
 
De fato não sabia. Não era lá muito boa em economia doméstica. Passava o dia todo em meio a cálculos de partilha. Trabalhava num grande escritório de advocacia que cuidava de divórcios, alguns milionários, outros nem tanto. Quando chegava em casa,  exausta, ia lá calcular a quantidade de sabão que a faxineira, que aparecia uma vez por semana, gastava? Teve vontade de perguntar: para quantas pessoas mesmo sua mulher lavava? Tem certeza de que ela não lavava pra fora? 
 
Havia aprendido, porém, nos últimos anos que economizava mais em ficando calada, até mesmo porque os últimos homens com que saíra não estavam lá muito interessados no que ela tinha a dizer. Aliás, fazia bem uma dúzia de meses que não saía com ninguém. As saídas não estavam compensando o que gastava de perfume francês. Nunca rendiam em segundo rendez-vous.
 
Na derradeira vez em que fora, esperançosa, a uma festa na casa de uma amiga, gastara bem uns quatrocentos reais na produção, incluindo vestidinho novo, chapinha,  unhas de porcelana e depilação decorativa de batman. Ao chegar encontrara uma dúzia de outras mulheres e meia dúzia de gatos pingados e não pardos.  Como acontece sempre nessas festas, os assuntos acabavam pingando e por fim se derramavam em torno do tal relacionamento entre os sexos. Um dos poucos espécimes masculinos presentes observou que o quiprocó estava no excesso de palração e mise en scéne.
 
“O que me cansa e todo esse protocolo, ter que convidar para jantar, gastar saliva, ouvir lero-lero. E depois do girar da maçaneta, vem mais mimimi.”
 
“Ora!” – respondeu a anfitriã Verônica – “Uma relação ou um encontro têm o bônus e o ônus.”
 
“Pare o mundo que eu quero descer” – Clarice não suportou trancar o cinto de castidade da boca. “Você quer dizer que conversar com uma mulher é um ônus para um homem?”
 
O rapaz entendeu que era sua a réplica.
 
“Sim, mulheres conversam demais. Fazem esse teatrinho romântico ainda, embora queiram o mesmo que nós. Tenho muitos amigos que desistiram de namorar e preferem as putas ou no máximo os aplicativos de encontros descomplicados.”
 
“Ah, é bem o costume local. Por acaso já te ocorreu que nesses casos vocês estão pagando em dinheiro vivo?”
 
“É mais barato no final das contas, porque além de tudo somos nós que temos que arcar com tal mise en scéne. Elas querem girar a maçaneta, mas não sacar das bolsas suas tarjetas.”
 
Clarice resolveu não pagar para ver em que iria descambar aquela conversa. Sempre a mesma, nunca trocavam de lado o LP. Muito miserê. Como ainda sonhava com romance, com histórias assim menos contratuais.
 
“Conta a lenda – disse outra moça, Patrícia – que algumas mulheres gostam e podem pagar as próprias contas. Eu jamais deixo que um homem pague, para que não invente de ter direitos a meu respeito.”
 
“Pois eu jamais abro a bolsa diante de um homem.” – observou outra, Estela. “Já basta a fortuna que gastamos na toalete. São dispendiosos os esforços para ser considerada atraente.”
 
“Eu sempre me ofereço para pagar, claro, –  contrapôs Lívia –,  mas lá no limbo, um outro lado meu, aquela mulher, a antiga, fica assistindo, avaliando o cavalheiro. Se ele não arca sequer com a conta do primeiro encontro, não estará disposto a doar e ceder nada.”
 
“Nós também avaliamos a dama na primeira ocasião. Observamos se não faz sequer o gesto de pegar a bolsa quando a conta vem, se evade para o banheiro quando o garçom chega à mesa, se finge distração. Estamos fartos de só vem a nós o vosso reino, de quem não quer somar, mas só subtrair, de gente para nos escalpelar. Além disso, já nem sabemos como proceder. Já saí com senhoritas que se declararam ofendidas quando lhes abri a porta do carro ou puxei a cadeira no restaurante. Me disseram que eram capazes de abrir a própria porta.”
 
“Só tenho encontrado senhores que se dizem descarnados e escalpelados por suas ex-companheiras. E quando chegam finalmente até nós, não nos dão para roer senão o esqueleto.” – procurou arrematar Lívia.
 
Clarice saiu antes que a conversa terminasse, antes de falar que ela bem sabia como atualmente a questão da economia pesava nas combinações entre os sexos, ambos sempre calculando a oportunidade, a conveniência, a relação custo-benefício de uma relação amorosa, de uma simples comida ou lavada pela quantidade de sabão em pó, palavras e reais despendidos. Foi embora, pois aquilo não iria levar a quarto algum. Tudo era, do cabo ao rabo, uma questão de cálculos. Andava feia a coisa para os lados da economia do amor.
 
Mas afinal lembrava de que afinal sempre fora assim, por mais que as telenovelas, a literatura e as comédias românticas do cinema induzam a crer no contrário: o dinheiro sempre esteve à frente ou envolvido nas questões de amor. Apenas a coisa está mais explícita, pragmática, e assim se exacerba quando homens e mulheres chegam à idade da razão, após já terem passado pela idade dos sentimentos, período em que a paixão, estado alterado da mente, semelhante à loucura e ao uso de drogas, torna-os perdulários, com acessos de altruísmo e generosidade.
 
Ao voltar para casa, Clarice pescou no grande imaginário coletivo uma boa oportunidade de negócios. O nicho estaria em elaborar contratos, não pré-nupciais, mas pré-encontros. Neles já ficaria estabelecido como cada um iria, se de ônibus, condução própria, se rachariam o táxi ou a gasolina. Ficaria de antemão definido quem deveria abrir a porta do carro para quem; se haveria cadeira a ser puxada;  se sentariam juntos em 3,2, 1; a quem caberiam o bônus da escolha das bebidas e o ônus da fatura do cartão. A tiracolo, já levariam também uma minuta do contrato pré-coito, definindo o local da conjunção carnal: casa de um, residência do outro,  em cima de árvore, encostados no poste ou muro, quem pagaria o motel, a quem iria competir o custo das camisinhas.
 
Em tal minuta, haveria importantes cláusulas sobre as posições a serem desenvolvidas, as permutas do Kama Sutra, o uso de acessórios, se um ou ambos seriam despachados no tradicional efeito catapulta ou se dormiriam de conchinha, se tomariam café da manha seguinte, aliás se haveria manhã ou dia seguinte, se ele ligaria ou ela ligaria, se eles nunca mais se falariam, se ele pararia de responder repentinamente as mensagens no WhatsApp, se ela o bloquearia. Pensando bem, aqueles contratos seriam por demais extensos, cheios de letras miúdas como formiguinhas de Melquíades. Melhor largar mão disso e enfrentar os cem anos forçados de solidão. Está feia mesmo a crise para os lados do amor. Não serão contratos que irão salvá-lo. 
 

Comentários

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  • 04.02.2016 11:25 luiz augusto

    Cássia, você se supera em cada conto.E nunca é demais repetir que nos divertimos muito com seu jeito simples de brincar com as palavras.

  • 27.12.2015 08:46 Ricardo Souza

    Adorei seu artigo!!

  • 21.12.2015 22:47 Nuno Cavaco

    Então - feitiços presos, amores soltos.

  • 21.12.2015 19:09 Cássia Fernandes

    Obrigada, João. Creio que estão aqui feiticeiros e feiticeiras acorrentados às próprias calculadoras de conveniências, Nuno. :)

  • 21.12.2015 16:45 Nuno Cavaco

    Homens encarcerados em corações negros de feiticeiras contadoras.

  • 21.12.2015 13:24 João

    Adorei, como sempre. Texto verdadeiro e divertido. Parabéns, nobre colunista.

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