O que acontece na Argentina interessa ao Brasil, que é o maior fornecedor daquele país e, por outro lado, também o principal destino das exportações argentinas, condição que faz do país vizinho o nosso maior sócio, na América do Sul.
Além da interdependência econômica, as duas maiores economias da região formam uma parceria estratégica para as estabilidades política e de segurança da América do Sul.
No próximo domingo, 23 de outubro, haverá eleições para presidente, governador, deputado e senador, na Argentina. Apesar da reeleição da presidente, Cristina Fernández Kirchner, ser quase certa, já no primeiro turno, seria simplista dizer que tudo seguirá como antes. O mundo vive uma segunda rodada da crise econômica-financeira e apesar da eleição argentina contar com as mesmas peças, o tabuleiro internacional é outro. Portanto, o momento político merece algumas considerações.
A Argentina vive um período de especial bonança, com nove anos de crescimento consecutivo, e demonstrou uma de capacidade de recuperação notável, depois do caos vivido pelo país, em 2001.
Naquele ano, o governo de centro-esquerda do então presidente, Fernando de la Rúa, declarou ser incapaz de pagar a dívida pública, instituiu o corralito (a população foi proibida de sacar dinheiro das contas correntes e poupanças, com a promessa de conversão em dólar, no futuro), houve uma convulsão social, o país sofreu várias trocas de presidentes e submergiu em escândalos de corrupção. Viveu o caos econômico, financeiro, político e social ao mesmo tempo.
Dez anos depois, a Argentina é o país que mais cresce na América do Sul, com previsão de um desempenho econômico de 8%, em 2011, de acordo com o Fundo Monetário Internacional. Já o Brasil deverá fechar o ano com um crescimento de 3,5%, de acordo com o governo, diante de uma estimativa de 4% para a economia mundial.
A conjuntura internacional favorável foi uma alavanca importante para a Argentina, devido aos preços altos das matérias primas e commodities, que compõem a pauta exportadora do país, como a soja. As demandas do Brasil e da China pelos produtos argentinos, também foram relevantes.
A conquista da estabilidade aconteceu durante a presidência de Néstor Kirchner. Em 2003, Kirchner criou um movimento, dentro do peronismo, que leva seu nome: Kirchnerismo. Um grupo político que conquistou o apoio de setores amplos da sociedade, incluídos os intelectuais, e se caracteriza pela centralização de poder, personalismo, clientelismo, populismo e enfraquecimento das instituições democráticas. Também são marcas do Kirchnerismo as posturas nacionalistas e anti-imperialistas.
A construção de um mito
Cristina Kirchner sucedeu ao marido, Néstor Kirchner, na presidêcia da Argentina e ficou viúva antes de terminar o mandato. Néstor Kirchner morreu de infarto, aos 61 anos de idade, e o falecimento do ex-presidente causou comoção nacional.
O crescimento da economia argentina, nos últimos nove anos, os programas sociais e a perseguição dos responsáveis pelos piores crimes da ditadura militar dos anos oitenta formam a identidade do Kirchnerismo e são as bandeiras que Cristina Kirchner segue empunhando, com um índice de aprovação de 60%.
O principal lema da campanha é “Força Cristina”, a mensagem que milhares de pessoas gritaram, durante o funeral de Néstor Kirchner. No dia 27 de outubro, quando Cristina Kirchner inaugurará um mausoléu de mármore, em memória do marido, provavelmente será como presidente reeleita.
A morte de Kirchner não enfraqueceu o Kirchnerismo. Muito pelo contrário. A transformação, em curso, de Néstor Kirchner em mito, favorece à reeleição. Mas Cristina Kirchner não construiu sua carreira política à sombra do marido. É advogada e legisladora desde 1989, já demonstrou domínio em debates sobre temas complexos, como lavagem de dinheiro e leis trabalhistas, para citar alguns exemplos, além de ter tido uma participação importante no desenvolvimento das estratégias de governo de Néstor Kirchner.
As comparações com Evita Perón são recorrentes. Cristina e Néstor formaram um casal no poder, como Evita e Juán Perón, nos anos 40 e 50. Evita foi santificada pelos pobres, quando ainda era viva. Cristina Kirchner disfruta de um grande apoio popular, em parte, devido aos programas sociais implantados, além de ter sido senadora pela província de Buenos Aires, onde vive a maioria da população pobre do país. Segundo Roberto Guareschi, que foi editor executivo do jornal Clarín, em Buenos Aires, durante 13 anos, Cristina modula a voz como Evita em seus discursos.
É possível enxergar semelhanças, mas também há muitas diferenças. Evita era uma atriz em busca de uma boa oportunidade, quando conheceu Perón. Cristina e Néstor construíram um projeto político juntos, desde o início da carreira de ambos. O conteúdo dos discursos de Evita evocava a pobreza, injustiça e compaixão. Cristina tem um tom muito mais agressivo. Evita atraia multidões em suas aparições públicas, já Cristina e Néstor jamais contaram com esse tipo de manifestação popular. Mas os mitos são construídos de maneira coletiva e misteriosa.
Enriquecimento ilícito
No começo do ano passado, os Kirchner foram acusados de uso de informação privilegiada para a compra de 2 milhões de dólares, antes da valorização da moeda, em 2008. Neste mesmo ano, o casal registrou um aumento de 158% no patrimônio, que saltou de 4,6 para 12 milhões de dólares. Mas os Kirchner conseguiram se livrar da acusação de enriquecimento ilícito, ao declarar que o aumento da fortuna era devido a venda de bens, no Supremo Tribunal.
Outro problema grande que Cristina terá que enfrentar, caso se reeleja, é o maior índice de inflação da região. O governo nega, mas analistas econômicos já anunciam uma inflação que pode variar de 25 a 30%, em 2011.
A política energética também é um exemplo de estratégia errada. O governo fixou o preço do gás, apesar da pressão inflacionária, desestimulou os investimentos no setor e o país, que era exportador, precisou importar gás para suprir a demanda interna.
As importações ainda crescem fortemente, enquanto o preço das commodities cai, como resultado da crise econômico-financeira mundial. O relatório do FMI, de 20 de setembro, prevê a queda nos preços das matérias primas e alimentos, como a soja, da qual depende uma parte importante dos recursos anuais da Argentina, que retém 35% das exportações.
Também exercem pressão sobre Argentina as medidas tomadas pelo governo brasileiro para permitir aumentos controlados da inflação, proteger o real em relação ao dólar, diante de uma desvalorização de 18% e controlar a entrada de capital não produtivo, através de aumento de imposto. A presidente Dilma Rousseff também se mostra menos tolerante que o ex-presidente Lula, no que se refere aos repentinos fechamentos das aduanas argentinas.
O medo do enfraquecimento da moeda argentina, o peso, pode levar os investidores a demandar mais dólares e a saída de capital resultar em diminuição das reservas do país. Neste cenário, o governo pode ter que subir a taxa de juros, adotar uma política fiscal menos expansionista, com uma consequente desaceleração econômica. A previsão de crescimento da economia argentina é de apenas 3,2%, em 2012.
O governo argentino já demonstrou preocupação com o tema e pressiona as grandes empresas para que diminuam as importações e aumentem as exportações. É verdade que o país está muito melhor preparado do que esteve em épocas passadas, mas ainda pode sofrer as consequências das turbulências externas e necessitar cortes nos subsídios que fomentam o consumo.
Oposição moribunda
Os adversários políticos criticam a presidente pela demora em tomar medidas para enfrentar a crise internacional, mas não conseguiram trazer os temas atuais da economia para o debate eleitoral. A oposição está totalmente dividida, na Argentina e perdida em discussões internas. De acordo com as pesquisas de preferência do eleitor, o segundo colocado, o governador socialista da província de Santa Fé, Hermes Binner, está a 40 pontos atrás de Cristina Kirchner. Uma barreira quase intransponível a essa altura do campeonato.
Diferentemente do sistema clássico de segundo turno, que só declara vencedor o candidato que conseguir mais de 50% dos votos na primeira rodada, na Argentina, o segundo turno pode ser evitado se o postulante obtiver mais de 45% dos votos ou mais de 10 pontos percentuais de diferença em relação ao segundo, isso se conquistar entre 40 e 45% dos votos.
Se Cristina for reeleita, será mantido o número atual de mulheres com cargos de presidência na América Latina, junto a Laura Chinchilla, na Costa Rica, e Dilma Rousseff, no Brasil.
Cristina Kirchner, que escolheu o ministro da Economia, Amado Boudou, como candidato a vice, prometeu continuar com as políticas atuais, que incluem intervenção forte na economia, subsídios pesados nos setores de transportes e energia e protecionismo comercial.
Em fevereiro, a Argentina restringiu a importação de 200 novos produtos, com prejuízo comercial para o Brasil, que por sua vez, adotou a mesma medida para importação de automóveis e autopeças, três meses depois, afetando diretamente as negociações bilaterais, num setor em que a Argentina apresenta défitis crescentes com o Brasil.
Se a conjuntura econômica internacional se complica, com prejuízos para a Argentina, o governo do país vizinho pode aumentar ainda mais a carga protecionista, com consequências negativas para o comércio com o Brasil.