Protestos,
manifestações, descontentamentos. A mesma informação pode ser usada para
descrever a atual convulsão social, em países de diferentes continentes. Se o
foco está nos países árabes, a notícia vale para Tunísia, Egito, Líbia e Síria.
Se me concentro na Ásia, a frase é válida para Índia e China. Se volto os olhos
para a Europa, posso estar falando da Grécia, Espanha e Inglaterra. Se as
atenções vão para o outro lado do Atlântico, me lembro das últimas notícias de
Nova York. Pois esta indignação também está movimentando a nossa vizinhança,
como Chile, a Bolívia, o Uruguai e já chegou até nós, o Brasil.
O que será
que está acontecendo no mundo, que tem levado tanta gente, de lugares tão diferentes,
às ruas para se manifestar ao mesmo tempo? Poderíamos recordar as rebeliões
estudantis, que agitaram várias partes do planeta, em 1968, numa época em que
ainda não se falava em globalização. O ano de 1989 também ficou marcado na
história devido à queda do Muro de Berlim e às revoltas na Praça Tiananmen, na
China. Talvez este seja o ano da indignação global!
A primavera
árabe já derrubou os regimes da Tunísia e do Egito. Dois acidentes, numa
fábrica e com um trem de alta velocidade, serviram de estopim social, na China.
Centenas de indianos foram às ruas em apoio ao ativista social, Anna Hazare,
que recorreu à greve de fome em defesa de medidas anticorrupção. A Europa está
imersa na incapacidade de pagar dívidas públicas e os ajustes provocam protestos
em boa parte do continente. Nos Estados Unidos, manifestantes bloquearam o
principal acesso ao coração de Nova York, em protesto contra o aumento da
desigualdade, a ameaça ao padrão de vida da classe média e o descontentamento
com as elites política e financeira do país.
Insatisfação
latina
Mas o que
acontece nas bandas de cá? Será que os ventos da primavera árabe chegaram à
América Latina? Já não se trata de um, dois e nem três exemplos de países, em
que a população reage com protestos, quando vê seus direitos desrespeitados e
não é atendida em suas reivindicações.
Vejamos o
caso mais emblemático: o Chile. O país vive um excelente momento econômico. Em
2010, teve um crescimento de 5,2% e deve fechar 2011 com um desempenho de 6,5%.
O Chile já é considerado um dos países com menos risco econômico, apresenta
bons indicadores de desenvolvimento, emprego e uma renda per capta de 15 mil
dólares, que levaram o país a integrar o seleto “grupo dos ricos”, como é
conhecida a OCDE, Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico.
Mas com
tanta bonança, porque dezenas de milhares de estudantes, cada vez mais seguidos
por seus pais, se mobilizam contra o presidente Sebastián Piñera e lhe conferem
um baixíssimo índice de popularidade de 26%? O movimento já é considerado o
maior e mais violento, desde o fim da ditadura, em 1989.
Os chilenos
reclamam, principalmente, porque o país foi longe demais na privatização das
universidades e, agora, exigem que o governo e Congresso reconheçam a educação
como um direito fundamental, na Constituição do país. Dito de outra forma,
cobram uma educação superior gratuita e de qualidade. A dura repressão do
governo às primeiras manifestações gerou mais revoltas.
Repressão
ainda mais violenta sofreram os indígenas da Amazônia boliviana, que se
manifestam contra a proposta do governo de construção de uma estrada, que
cortará o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS).
A estrada,
além de desrespeitar um direito constitucional dos índios, corrói a imagem ecologista
e indigenista de Evo Morales e evidencia que o presidente é, antes de mais nada,
um líder sindical, muito mais preocupado em atender os interesses dos produtores
de coca, a quem o projeto realmente beneficiará.
A reação
violenta do governo à marcha indígena levou à renúncia de dois ministros, pôs
em risco o apoio dos dois terços parlamentares necessários para aprovar leis
sem debate e minou a popularidade já desgastada de Morales, que contava com 36%
de apoio, antes dos enfrentamentos.
Vale a pena
lembrar os fenômentos políticos ocorridos no Uruguai e Peru, recentemente. O
Peru foi o país da região com os melhores resultados econômicos, em dez anos.
Cresceu quase 6% ao ano em média, reduziu a pobreza significativamente e
diminuiu a desigualdade social histórica, ligeiramente. No entanto, os dois presidentes responsáveis
por esses avanços, Alejandro Toledo e Alan García, terminaram seus mandatos com
índices de popularidade insignificantes.
No caso do
Uruguai, também houve conquistas econômicas e sociais importantíssimas, na
última década. O país mantém taxas de crescimento invejáveis, reduziu a pobreza
consideravelmente e Montevideu vive um boom imobiliário. Mesmo assim, a Frente
Ampla, a coalizão política de centro-esquerda que elegeu o atual presidente,
está dividida, a popularidade de José Mujica estremece e predomina um ambiente
de apatia e pessimismo, no país.
Os
indignados do Brasil mostraram a cara no dia 29 de setembro, quando 30 mil
pessoas foram às ruas de Brasília com o lema: “Um país rico é um país sem
corrupção”. O movimento continua e o desafio, agora, é recolher assinaturas
para acabar com o voto secreto, no Congresso e mostrar a insatisfação da
sociedade com o projeto de retomar as listas eleitorais fechadas por parte dos
partidos políticos, que passariam a decidir que candidatos ascenderiam ao
poder.
Indignados
entrelaçados
Existe uma
link entre todos esses acontecimentos? É tentador dizer que essas manifestações
estão ligadas por uma globalização que impulsiona a renda dos ricos ao mesmo
tempo que cria um mercado internacional de trabalho, que achata os salários dos
não especializados. É preciso ter cuidado com conclusões diante de eventos tão
distintos.
Claro que
há diferenças entre a ação de uma manifestante líbia que arrisca a vida por
liberdade, um jovem espanhol que reivindica trabalho e um estudante brasileiro,
que já não tolera a corrupção. Mas existem traços comuns nos movimentos dos
indignados globais, ainda que alguns apresentem mais conexões entre si, que
outros.
As redes
sociais foram usadas, em quase todos eles, como instrumento de mobilização
social e um potente multiplicador de informação sobre as conquistas resultantes
dos protestos, em diferentes lugares do planeta.
Entre estas
conquistas, está o prêmio Nobel da Paz à Tawakul Kerman, uma política e ativista
de direitos humanos, que lidera o grupo de Mulheres Jornalistas Sem Cadeias de
Comunicação, no Iémen, um dos países mais afetados pela revolução árabe. Kerman
tem uma grande participação na mobilização de dezenas de milhares de mulheres,
que cobertas por mantas negras, vão às ruas exigir o fim dos 30 anos de
ditadura do presidente Ali Abdulá Saleh.
Nos países
latinos, não há ditaduras como no Iémen, mas existe uma insatisfação,
principalmente entre os jovens, em relação a um sistema de representação
democrático, em que as pessoas não se sentem representadas e demonstram que não
estão dispostas a cruzar os braços diante das evidências de corrupção.
Os
resultados dos indicadores macroeconômicos são muito favoráveis, mas nem sempre
se traduzem em trabalho para os mais jovens. Cidadãos comuns se sentem
excluídos dos benefícios do crescimento econômico. A desigualdade social ainda
é um dos graves problemas da região e, cada vez, menos tolerado.
O
crescimento das classes médias latino americanas não foi acompanhado de uma
adequação das instituições democráticas, dos sistemas educativos, da inserção
dos jovens, no mercado de trabalho e acesso à cultura.
Brasil
E aqui,
gostaria de abrir um parêntesis para o novo mapa social brasileiro, em que a
classe média já representa 52% da população, é maioria na sociedade e capaz de
decidir as eleições. Uma mudança pra lá de significativa e que está no centro
do debate político nacional, depois que 30 milhões de pobres saltaram da
pobreza à classe média baixa, nos últimos oito anos. Um novo universo, que
ainda precisa se moldar à classe média tradicional, sacrificada economicamente
e que não cresceu em proporção ao salto dado pelos pobres.
A América
Latina viveu uma transformação social fenomenal, nos últimos 15 anos, que foi
antecedida por transições políticas também importantes. Mas a região necessita
novas estruturas políticas, de educação, acesso à cultura e diversão.