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Gismair Martins Teixeira

Kardec e a gênese do imaginário espírita

| 03.10.17 - 18:24
O recém-falecido crítico literário, Antonio Candido, considerava o romance “Grande sertão: veredas”, do escritor e diplomata mineiro, João Guimarães Rosa, como um dos maiores portentos já produzidos pela literatura universal; um autêntico orgulho das letras nacionais. Nessa obra, Riobaldo, o protagonista que narra suas aventuras de ex-jagunço a um interlocutor oculto no texto, afirma a certa altura que o que cura mesmo a loucura é bastante reza.
 
Por esse motivo, ele aceita as preces de todos os credos, bebendo, em suas palavras, água de todos os rios, aceitando indistintamente as orações de sacerdotes diversos, recebendo também as orações de seu “cumpade Quelemém, seguidor da doutrina de Cardéque”. Em sua reelaboração da linguagem, um dos índices da grandiosidade de Rosa na concepção dessa obra extraordinária, o autor translitera o pseudônimo do sistematizador da doutrina espírita, Allan Kardec, para uma escrita que dialoga com os demais vocábulos que reproduzem graficamente o falar sertanejo do interior de Minas Gerais, Bahia e Goiás.
 
Nascido Hippolyte Leon Denizard Rivail num 03 de outubro do ano de 1804, Allan Kardec seria o pseudônimo adotado para distinguir a sua produção didática da sua vasta bibliografia fundadora do espiritismo, termo por ele cunhado para referir-se à doutrina surgida a partir das manifestações paranormais em seu intercâmbio com os vivos através de indivíduos dotados de uma sensibilidade especial a que Kardec denominou mediunidade.
 
A primeira obra sobre o tema editada pelo pesquisador francês surge em Paris no dia 17 de abril de 1857. A partir de então, o imaginário espírita se instaura. Como toda manifestação no campo ideológico, atrai advogados para sua causa, bem como críticos ferrenhos, o que é perfeitamente natural no contexto da história das ideias.
 
Kardec, imaginário e cultura
Em “As estruturas antropológicas do imaginário”, Gilbert Durand define o imaginário como sendo “o conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado do homo-sapiens”. É uma definição abrangente, que encerra um volumoso conjunto de conceitos explorados pelo autor numa vastíssima bibliografia, o que eleva seu trabalho a uma condição de muito relevo nesse campo de estudos. Gilbert Durand perpassa os mais diversos campos do saber, como a filosofia, a antropologia, a psicologia, a sociologia etc. para estabelecer os parâmetros de sua definição.
 
Assim, o imaginário espírita vai apresentar todo um conjunto imagético que a ele remete e que tem sido explorado ao longo do tempo em locais diversos, tendo em Allan Kardec o seu iniciador. No campo literário, além de Guimarães Rosa, “Os Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoiévski, abre um diálogo com o imaginário espírita-kardequiano quando Ivan, um dos protagonistas, dialoga com o demônio e este faz menção à atividade dos espíritas, numa referencialidade a um dos motes explorados pelos adversários das ideias kardequianas para subestimá-las.
 
Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann apresenta todo um capítulo que contempla uma sessão mediúnica bastante singular, caracterizada pela manifestação ostensiva dos espíritos. “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, em seus dois volumes iniciais também se refere ao imaginário espírita e sua relação com a problemática da reencarnação e da fenomenologia mediúnica.
 
Além do espaço da ficcionalidade literária, outras iniciativas culturais têm se desenvolvido em torno do nome do sistematizador do espiritismo. Constitui exemplo disso a defesa de uma tese de doutorado na USP no ano de 2001 sob o título de “Pedagogia Espírita: um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas”, em que a pesquisadora Dora Incontri apresenta as bases culturais em que Allan Kardec se formou e de que lançaria mão na elaboração da doutrina espírita.
 
Diversos programas de pós-graduação brasileiros têm contemplado o pensamento kardequiano e seu imaginário nos últimos anos, nas mais diversas vertentes de pesquisa. Pesquisadores diversos têm utilizado de seus conhecimentos acadêmicos para estabelecer importantes correlações entre o pensamento de Kardec e outras instâncias do saber, numa perspectiva cultural instigante. Em Goiás, por exemplo, o Doutor em Direito, Emídio Silva Falcão Brasileiro, fundou a Academia Espírita de Letras de Goiás, a primeira do gênero de que se tem notícia, tendo Allan Kardec como patrono da Cadeira nº 1.
 
Ainda nesse contexto de cultura, o espaço virtual disponibilizado pela internet tem assumido importância significativa. Há poucos meses, o Doutor e Mestre em lógica e filosofia da ciência pela Universidade de Campinas-UNICAMP, Cosme Massi, criou a plataforma digital https://www.kardecpedia.com/, que disponibiliza a obra completa de Allan Kardec em quatro idiomas: francês, inglês, espanhol e português, com ferramentas que permitem estudos comparados de tradução bastante úteis a pesquisadores interessados, numa instigante contribuição à cultura, já que o número de pesquisas acadêmicas em torno do imaginário espírita tem crescido de forma a despertar a atenção não somente pelo caráter de religiosidade em si, mas também pelas características básicas da história das ideias que vão espraiando-se pela cultura como um todo.
 


*Gismair Martins Teixeira é Doutor em Letras e Linguística; professor e pesquisador.
 

Comentários

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  • 04.10.2017 15:46 Franco Luciano Pereira Pimentel

    Muito bom artigo. Agradeço a oportunidade da reflexão. Penso e concordo com a mesma razão. Toda forma de interpretação requer certa base de imaginário. O ser humano que não imagina não é capaz de representar. Não é capaz de organizar, pela vontade, como diz Schopenhauer, seu próprio mundo. Sim. De fato, o imaginário espirita espreita e forma/orienta as conexões futuras acerca das manifestações espirituais, suas influências sobre o mundo material. Entretanto, incrível é pensar que a revelação espirita, a demonstração do universo dos espiritual e suas influências sobre a dimensão física, ocorreu em forma de uma "invasão organizada" como dizem os espíritos, pelas palavras de Conan Doyle, feita no mundo inteiro. Em todos os continentes, no período entre os séculos XVIII e XiX, vemos ou ouvimos falar de algum tipo de manifestação concreta desses fenômenos. Por esse motivo a enormidade de seitas e crenças surgidas. Umas, Ineditamente que levam o nome de seus iniciadores, e outras, pelo mesmo motivo, tornaram-se dissidentes dos grandes troncos religiosos; Todas, de um modo ou de outro, sustentadas no berço das expressões culturais. E justamente por ai se encontrarem , no colorido da linguagem habitual, é que o elemento essencial se torna difuso e a mensagem se embaça. Justamente por isso (em função desse colorido embotador que, naturalmente arrasta consigo a tradição mitificadora) que as delineações claras e objetivas da cultura francesa, por meio da filosofia, do positivismo contista apoiado no berço cartesiano -, tenha se encaixado tão perfeitamente à organização Kardecista demonstrando tanta solidez. Como ele mesmo diz. "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade". Produzir um imaginário, portanto, é produzir um referencial pelo qual se pode observar os fenômenos do mundo e, a partir daí, reinterpretá-lo.

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