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Gabriel Chalita

Na simplicidade, Deus

| 26.05.17 - 21:12

Goiânia - Seu João vive no interior. E gosta de viver no interior. Não conhece as grandes cidades. Mas não sente falta. Gosta do lugar em que nasceu. Das montanhas que protegem seu vale. Dos riachos. Dos cantos que inauguram seus amanheceres. Identifica os pássaros. Os de canto curto. Os de canto prolongado. Os mais barulhentos. Os mais afinados. E não se incomoda com os galos madrugadores.
 
Gosta do mexer sem pressa a xícara de café, enquanto olha pela janela. A paisagem é sempre a mesma. Nunca é a mesma. Nos dias frios, aconchega-se em um velho cobertor de lã. Velho, mas valioso. Para ele. Pelos dias que foram aquecidos. Pela mulher que já partira. Doente. Valente. Morreu Adélia no inverno. Fazia frio quando o sino da cidadezinha chorou as badaladas tristes. Os amigos foram. O padre lembrou as caridades que Adélia fazia. Era cantora, também. Cantora de Igreja. Afinadíssima como alguns passarinhos, na opinião de João. Por que morrera antes dele? Porque é assim. Preferiria que partissem juntos. Mas não dependeu dele. O que dependeu ele fez.
 
Amou. Cuidou. Tomou os cafés sem pressa reparando na sua mulher.Que era sempre a mesma. Que era sempre diferente. Conheceu Adélia ainda menina. Gostou do nome e do jeito. Tímida. Recatada. Ensaiou alguma aproximação. Foi feliz. Foram felizes. 
 
Os dias que viveram juntos anteciparam o que acredita João ser o Céu. Amor em abundância. O pouco que tinham, dividiam. Nada de trancafiamentos. Nada de mesquinharias. Nem nos sentimentos. Nem nas posses. Poucas posses tinham os dois. Não tiveram filhos. Tiveram momentos regados por dizeres e pausas. Juntos. Seu João lembra da amada todos os dias. Sem as dores dos primeiros dias sem ela. Lembra até com alguma alegria. Das coisas engraçadas. Dos erros que cometeram. Dos acanhamentos.  Em dias de festa, quando havia gente de fora da cidade, Adélia tinha vergonha de cantar na Igreja. João sabia disso e, por isso, ficava mais junto dela. 

Há crianças na rua em que Seu João mora. Ele é aposentado. Tem tempo para contar histórias. E gosta de fazê-lo. No passado, trabalhou na estrada de ferro. Gosta de falar sobre o trajeto dos trens. Sobre a época em que havia passageiros. Sobre as mulheres que chegavam com vestido gordo e chapéu elegante. Sobre os homens que achavam a cidade muito pequena. 
 
Conta histórias que contaram para ele. Sempre dá um jeito de falar de Adélia, da cantora que canta no Céu. Foi quando Felipe quis saber onde ficava o Céu. Seu João olhou para o alto. Abaixou o olhar. Colocou a mão no coração. Apertou. Fechou os olhos. Abriu os olhos. Respirou profundo. Deu um sorriso. E respondeu: Quem sabe?
 
Sorriu novamente e certificou: Que existe, existe. Leninha pediu outra história. Felipe insistiu nos questionamentos: E Deus?O que é que tem?, devolveu Seu João. Onde mora Deus? Seu João aproveitou a pergunta e perguntou para as crianças. Cada uma respondeu o que quis.No Céu;Em todo lugar, Na Igreja

No coração da gente;. E a cena seguia naquele interior. Seu João sorria e agradecia por viver ali. Pensava ele, consigo mesmo, numa frase que alguém um dia falou: Na simplicidade, Deus. Contou a história, para aquelas crianças, de uma mulher que chegou à estação e não sabia para onde ir. Bonita, mas sem destino. E, na estação, encontrou um homem meio desanimado da vida. Alguma nuvem se apressou e o sol pôde iluminá-los. E, juntos, mudaram um ao outro. E foram felizes.

O amor faz essas gracinhas. 
Levantou-se e foi até a velha cozinha. Tirou a tampa de um pote de vidro alto e retirou os biscoitos de polvilho. Ajeitou tudo em uma tigela e levou para as crianças. Sentou-se novamente e foi servindo uma a uma. Esqueceu-se do suco. Disse que já pegaria. Enquanto mordia aquele biscoito, fechava os olhos e se lembrava do quanto era boa a vida. 
 
Felipe se ofereceu para pegar o suco. Ele agradeceu. As crianças queriam mais histórias. Ele queria contá-las. Vez ou outra, ele se interrompia para explicar o pio de algum passarinho. O entardecer já chegava. Foi quando Seu João pediu algum silêncio para que vissem juntos mais um pôr do sol.  Enquanto via, ele pensava nas perguntas. “Onde fica o Céu?”. “Onde mora Deus?”.

*Gabriel Chalita é escritor, doutor em Filosofia do Direito e em Comunicação e Semiótica.

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