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Gabriel Chalita

Encanto ou espanto?

| 13.03.17 - 18:46
 
O fato ocorreu em um vagão de metrô. De um lado, um casal com o seu filho. Do outro, também. Um outro casal e uma outra criança.
 
No início da viagem, as crianças pareciam sem muita empolgação. Quietas. Os adultos falavam. De um e de outro lado. Falavam sobre coisas que nada significavam para as crianças. Mas as crianças estavam ali. Naquele vagão. Naquela viagem. Foi quando o pai disse ao filho: "Você é um encanto". Não sei muito bem o que o filho havia feito para receber esse afeto. O filho sorriu. Meneou sua cabeça no colo da mãe. E, do colo da mãe, via o pai. E assim prosseguiram.
 
Enquanto prestava atenção à cena, ouvi um outro dito que me pareceu o mesmo. Agora do outro lado. "Você é um encanto". Vi a criança chorando. A mãe dando de ombros. E o pai prosseguindo o seu dito de adulto. Não. A frase fora outra. Talvez empolgado pelo que ouvi e vi, imaginei se tratar do mesmo afago. O pai disse ao filho: "Você é um espanto". Não sei o que fez o menino para ouvir essa sentença.
 
O que é um espanto? Espanto pode ser surpresa, admiração. Mas pode ser assombro. E o filho chorou. E o choro foi tido como rotina, e os pais prosseguiram entre eles.
 
Encanto não tem duplo significado. Encanta quem agrada, quem tem qualidades, quem desperta bons sentimentos. Uma criança chorava, a outra ria. Uma criança participava do enlace entre os pais. A outra estava à parte. Uma parte que espantava.
 
Todos em um vagão de metrô. Todos no movimento. Todos vindo de algum lugar e indo para algum lugar. Não sei de onde vinham nem para onde iam. Não sei quando haveriam de descer. Nem as razões que levavam ao encanto ou ao espanto. Sei que crianças dependem de vínculos. Dependem de dizeres e de atenção. Para o riso ou para o choro. Para a paz ou para o desassossego.
 
Falavam entre eles, os adultos, na viagem que faziam. E os filhos? Longe de mim decidir motivos, razões, vidas. Apenas nos vimos na viagem. Vejo, na viagem da vida, muitas crianças e seus pais. Ouço vozes de incentivo, palavras de amor. Ouço vozes de desprezo, palavras dor.
 
O que será dessas crianças? Encanto? Espanto? Quem decide o que seremos? De quantos ontens é feito o hoje. De quantos hojes se fará o amanhã? A semântica tem poder. Dizer a um filho, "você é um encanto", tem poder. Dizer a um filho, "você é um espanto", tem poder.
 
Lembrei-me de Guimarães Rosa e de seu Miguilim. E da importância do olhar dos adultos com as crianças.  Miguilim era menino que via sem ver. Menino que nos ensina que ver bem, não raro, também vem de dentro. Tinha olhar de espanto para o mundo que o rodeava no sertão, mas de um espanto que provocava encanto. Certo dia, um cavalo trouxe um homem. Movimento simples, mas que agitava a vida pacata do Mutum. Miguilim, com espanto, notou que o homem era grande, claro, tinha óculos e chapéu diferente. O olhar do homem sobre Miguilim espantou-se porque o menino, para vê-lo, apertava os olhos. O desconhecido pediu para ir ter com a mãe. O doutor do cavalo e do chapéu emprestou-lhe os próprios óculos. O olhar de Miguilim encantou-se. Não podia acreditar. Tudo mudara. Tudo era mais lindo. O invisível se fez grande: o grão de areia, as pedrinhas, os detalhes caprichosos da natureza. E tudo era tão claro. A mãe incentivou:  “Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai.”. E Miguilim foi. Partiu com o doutor para novo encanto. O encanto da cidade. Um olhar, um cuidado, uma atenção, um gesto. E um novo futuro descortinou-se para aquela criança.
 
O vagão chacoalhava. Interrompeu meus pensamentos. Os balanços nos levam um pouco mais a um lado ou a outro. É preciso aprender a se segurar. É preciso aprender a levantar, se porventura cair. Quem são os ensinadores? Que palavras devem ser usadas para ensinar? E os gestos? Lindo o gesto do menino com a cabeça no colo da mãe olhando para o pai.
 
O outro casal estava ocupado demais para ver o filho. O choro do filho. O espanto do filho. Talvez estivesse mesmo espantado. Espanto com a ausência da palavra encanto. Quem sabe no movimento do vagão, da vida, o menino encontre outros dizeres. Quem sabe. O que se sabe é que palavras têm poder. O poder de espantar. O poder de encantar.



*Gabriel Chalita é escritor e professor, presidente da Academia Paulista de Letras

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