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Gismair Martins Teixeira

O erudito, o lúdico e o infantojuvenil

| 21.02.17 - 18:08
Em uma coletânea endereçada ao público infantojuvenil, o crítico de literatura norte-americano, Harold Bloom, seleciona contos e poemas de autores clássicos de diferentes épocas e lugares como, por exemplo, Arthur Conan Doyle, Esopo e Lewis Carroll, que constam do terceiro volume da série intitulada “Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades”.
 
A seleção literária apresenta uma justificativa bastante peculiar de Bloom em relação aos autores e aos trabalhos escolhidos. Conforme o professor estadunidense, muito da literatura infantojuvenil pensada para o público dessa faixa etária no presente é de ínfima qualidade, pois trataria o seu leitor de forma a subestimar-lhe o potencial cognitivo em todas as suas possibilidades.
 
Um olhar sobre os roteiros de animações e desenhos produzidos nos últimos anos para o cinema e a televisão faz pensar na possibilidade de que os criadores e produtores dessas peças artísticas para crianças e adolescentes têm concebido de forma cada vez mais semelhante ao que é proposto por Harold Bloom como justificativa para a sua seleta literária. Os exemplos são muitos e podem ser pinçados de várias fontes. Duas exemplificações ilustram bem a perspectiva bloomiana a respeito do conteúdo infantojuvenil que pode e deve ser inteligentemente lúdico. 
 
“SHREK” E “GRAVITY FALLS”
Em “Shrek”, animação computadorizada produzida pela PDI/DreamWorks em 2001, tem-se uma concepção que resgata o dialogismo romântico entre o feio e o belo, o sublime e o grotesco, instaurando uma subversão estética no contexto do imaginário. O príncipe encantado e belo é o vilão. O ogro, tradicionalmente grotesco, é o mocinho da história.
 
A princesa, vítima de um feitiço, é humana durante o dia, portanto bela. À noite, transforma-se na versão feminina do ogro. Tendo a possibilidade da escolha no final da trama, opta por permanecer em sua versão monstruosa, formando par romântico com o ogro “Shrek”. Essa animação alcançou grande sucesso de público e crítica. Por conseqüência, teve desdobramentos cinematográficos.
 
Em “Shrek 2”, a sequência produzida em 2004 apresenta o casal de ogros à volta com as vilanias do príncipe encantado e sua mãe, uma fada madrinha que exteriormente se apresenta como o ideal concebido pelas histórias infanto-juvenis tradicionais, mas que na verdade se revela dotada de grande maldade. Esse ponto da narrativa resgata curiosa e geralmente ignorada faceta das fadas.
 
Em “Leviatã”, obra do filósofo Thomas Hobbes publicada pela vez primeira em 1651 e que trata de política e do contrato social, dentre outros tópicos, o autor dirige duras críticas ao clero tradicional. Em uma delas, compara-os às fadas, ressaltando a erudita apropriação que os criadores de “Shrek” fizeram desse outro lado pouco conhecido das criaturas mágicas. No capítulo 47 da Quarta Parte, escreve Hobbes: “Fadas e fantasmas habitam as trevas, as solidões e os túmulos. (...) Não podem as fadas ser presas nem levadas a responder pelo mal que fazem. (...) Se alguém desagrada às fadas, diz-se que estas enviam seus duendes para beliscá-lo. (...) Não se casam as fadas, mas entre elas há íncubos, que copulam com gente de carne e osso”.
 
A cada um desses caracteres negativos das criaturas mágicas, Hobbes enfatiza o seu anticlericalismo, fazendo corresponder alguma característica negativa dos maus eclesiásticos de todos os tempos. Em “Once Upon Time”, série televisiva norte-americana que aproveita o etos shrekiano em relação ao mundo das fadas, estas criaturas se apresentam ao mundo dos humanos disfarçadas de freiras.
 
Portanto, a fada madrinha de “Shrek 2” resgata um dado cultural importante ao pôr em evidência que nem sempre o seu mundo representou o que foi popularizado no imaginário pela expressão “conto de fadas”, que faz alusão somente a coisas boas e agradáveis.
 
Por sua vez, o desenho animado “Gravity Falls”, uma produção dos Estúdios Disney de 2012 a 2016, apresenta duas temporadas de uma história que relata estranhos acontecimentos na cidadezinha madeireira de Gravity Falls, no interior de Oregon, nos Estados Unidos. Criado por Alex Hirsch, “Gravity Falls” brinca com o imaginário difundido na internet sobre os chamados “Illuminati” e a quase infindável rede de teorias da conspiração em torno deles e de seus pretensamente escusos objetivos.
 
Conforme o seu criador, a narrativa que tem como protagonistas o casal de irmãos gêmeos, Dipper e Mabel, reflete um quê autobiográfico, já que em sua infância e adolescência ele era extremamente curioso em relação a simbologias, criptogramas, gematrias, teorias da conspiração e assuntos correlatos. Assim, a história que se desdobra em quarenta episódios apresenta como vilão maior o “Olho Que Tudo Vê” do universo conspiracional, cuja forma é o triângulo com um olho no centro, que no desenho recebe o nome de Bill Cipher.
 
Bill é um vilão extradimensional, que pretende adentrar em nosso mundo de três dimensões para dominá-lo. Seu primeiro contato com os humanos se dá a partir da criação de um portal que une dimensões por parte do tio-avô de Dipper e Mabel, Stanford Pines, que também possui o seu irmão gêmeo, Stanley Pines. As crianças estão na cidade passando suas férias de verão, período em que se desenrola toda a história repleta de pistas e referenciais das teorias conspiratórias.
 
Tanto “Shrek” quanto “Gravity Falls”, que se caracteriza como uma instigante narrativa que tem por base o dinâmico mundo virtual das novas gerações, repleto de informações e labirintos cognitivos, permitem inferir que Harold Bloom pode estar certo ao questionar o tratamento simplório que esse ou aquele autor venha a dar ao público infantojuvenil do mundo digital do século 21.
 


*Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduce-GO. 

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