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Márcio Jr.

Bowie: mapa do passado desvendando o futuro

| 13.01.16 - 08:37


Márcio Jr. 

 
Goiânia - Estou de férias, longe de casa, tentando evitar a todo custo o início de 2016. Mas o ano começou. E não começou bem. Dormi, dia 10 de janeiro, feliz da vida, comemorando o 6º aniversário de minha filha Bárbara. Acordei, dia 11, com a inacreditável má notícia: David Bowie morreu. Como assim? Desde quando imortais podem se dar a esse luxo? Foi como se uma montanha de gelo desabasse sobre mim. Ou como se o Sol subitamente se tornasse negro. Ainda agora é difícil aceitar essa perda. É duro imaginar um mundo sem David Bowie.
 
Bowie foi o maior e mais genial artista de sua geração. Sua partida deixa um vazio que só pode ser preenchido por ele mesmo e pela magnitude de sua obra. Outros (não muitos), até fizeram mais sucesso (em popularidade e, eventualmente, grana). Mas sob um olhar crítico, a carreira de David Bowie não encontra paralelos. Não tem Beatles, Stones, John Lennon, Bob Dylan, Frank Zappa ou Jimmy Hendrix que sejam páreo para a complexidade, relevância e influência da intrincada tapeçaria que é a trajetória artística de David Bowie. 

 
Reduzir o artista a ícone da música pop é tarefa restrita aos desavisados. Como ator, brilhou nos palcos e nas telas. Foi mímico, pintor, produtor e muito mais. Seu impacto na moda foi gigantesco. E mais ainda no comportamento: primeiro pop star a se declarar bissexual, através da androginia do alienígena Ziggy Stardust tirou do armário e deu colo à toda sexualidade não-hegemônica e reprimida da segunda metade do século XX. Freak inclassificável, Bowie foi porto seguro para desajustados, párias, deviantes. Tive a grata oportunidade de conferir em Londres, 2013, a monumental exposição David Bowie Is, no Victoria and Albert Museum (e minha má-fama à frente dos Mechanics me impede de dizer quantas vezes chorei ali dentro). Fiquei tocado ao ver senhoras e senhores, com seus 60 anos, emocionados em reencontrar a trilha sonora que Bowie criou para suas vidas. Afinal, foi mesmo através da música que David Bowie encontrou sua forma mais poderosa de expressão.
 
Bowie foi o artista que fez da mudança e da ousadia a matéria-prima de sua carreira. Enquanto no Brasil vacas sagradas como Caetano Veloso e Gilberto Gil seguem vergonhosamente regurgitando a mesma ladainha há décadas, Bowie manteve-se imprevisível. A cada novo trabalho, queimava a ponte atrás de si, caminhando inexoravelmente rumo ao novo. Daí a profusão de tentativas esquemáticas de se estabelecerem balizas para categorizar sua obra: camaleônica, futurista, repleta de “ch-ch-ch-ch-changes”. Clichês que não deixam de ser verdades, mas que também não dão conta da riqueza da carreira de Bowie. O complexo mapa musical traçado ao longo de mais de cinco décadas permanece como um patrimônio incalculável. E se por um lado é triste pensar que a última rota deste mapa foi traçada em 08 de janeiro – data de seu 69º aniversário – com o lançamento de Blackstar, por outro é reconfortante saber que as possibilidades de percurso dentro dele são virtualmente infinitas.
 
O olhar vítreo e o raio vermelho rasgando o rosto de Aladdin Sane estão agora, mais que nunca, viralizados na internet. Todos choram, com razão, a partida de David Bowie. Mas não deixa de ser sintomático que as listas de álbuns e músicas utilizadas para ilustrar sua importância fiquem restritas aos trabalhos lançados até o início da década de 80 – exceção usualmente feita ao inesperado retorno em disco com The Next Day (2013), após uma década de silêncio e reclusão. Sintoma de incapacidade da crítica e de parte do público em lidar com os enigmas sonoros propostos por Bowie a cada novo álbum desde então. Como uma esfinge, desafiou a todos, mas principalmente a si mesmo. Acomodar-se com o sucesso e tornar-se uma auto-caricatura foi algo rechaçado na primeira oportunidade. Volto a pensar em Gil e Caê e vejo que estamos fritos. Em azeite de dendê.
 
Como todo mundo sabe, a discografia de Bowie é considerada irretocável até Scary Monsters, de 1980. Em 1983, com o olhar de águia pelo qual ficou famoso, recruta o Chic Nile Rodgers para produzir Let’s Dance, álbum em que abre mão da abordagem avant garde em troca do que de mais sofisticado a música pop (como gênero) já produziu. De prestigiado e influente artista, Bowie é lançado ao megaestrelato. E de brinde entregou a fórmula a diversos seguidores, como Duran Duran e Madonna, que também contaram seus milhões sob a estrelada batuta de Mr. Rodgers. O sucesso comercial de Bowie foi tamanho que parte da crítica, pela primeira vez desde Ziggy Stardust (1972), lhe torceu o nariz. Uma injustiça reparada nas últimas décadas, onde a influência e frescor do disco têm sido cada vez mais reconhecidos e incensados. A compreensão tardia por parte da crítica foi, de certa forma, uma constante em sua carreira.
 
Na esteira do sucesso, Bowie engata gigantescas turnês mundiais e lança seus álbuns mais frágeis, Tonight (1984) e Never Let Me Down (1987). E então, apesar das contas astronômicas, chuta tudo para o alto e parte para uma nova fase, onde retoma o gosto pelo perigo. Ou seja, para Bowie, deitar-se sobre os próprios e merecidos louros não foi uma hipótese duradoura. Portanto, tentar apreendê-lo apenas pelos trabalhos realizados até Let’s Dance é de uma bovinice sem tamanho. No mapa sonoro de Bowie, ainda existem muitos trajetos inexplorados adequadamente.
 
A reinvenção após Never Let Me Down começa da forma mais improvável possível: Bowie agora é apenas um dos membros de uma nova banda, o Tin Machine. Ali, cometeu dois discos viscerais e inspiradíssimos que anteciparam o grunge. Ninguém entendeu nada. Em 1993, com Nile Rodgers novamente a tiracolo, lança o classudo Black Tie White Noise, onde exorciza os fantasmas do irmão mais velho (morto por suicídio), celebra o próprio casamento com a modelo somali Iman, e ainda reencontra Mick Ronson, guitarrista/escudeiro dos tempos de Ziggy. A trilha da série de TV britânica The Buddha of Suburbia é lançada no mesmo ano, sem a atenção merecida. 
 
Em 1995, ao lado de Brian Eno, parceiro dos tempos da trilogia de Berlin, compõe o cyberpunk e literário 1. Outside, partindo em turnê com os Nine Inch Nails de Trent Reznor. Dois anos depois, flerta com o jungle e drum’n bass no urgente e multifacetado Earthling. “hours...’ vem em 1999, quebrando o ritmo acelerado, e compondo um belíssimo disco intimista, de um artista que há pouco cruzara a margem dos 50 anos de idade. Na sequência, retoma no soturno Heathen a colaboração com o produtor Tony Visconti, com o qual faria todos os próximos discos – como Reality, lançado em 2003, em cuja turnê sofreu de problemas cardíacos que o levaram a uma angioplastia e ao duradouro silêncio. Traduzindo em miúdos mais que graúdos, entre Never Let Me Down e The Next Day, Bowie lançou NOVE álbuns inéditos, que ainda clamam por audições e análises mais profundas e cuidadosas. Um oceano musical a ser mergulhado.
 
A década em que Bowie se recolheu aumentou exponencialmente o interesse pelo artista. Muitos haviam dado sua carreira como encerrada. Numa era em que a instantaneidade da internet passou a ditar o ritmo da vida, a reclusão de Bowie se converteu num mistério insólito. E então, em 08 de janeiro de 2013, o lançamento do melancólico e poético single “Where Are We Now?” causou uma espantosa surpresa, precedendo o espetacular – tão espetacular quando seus trabalhos anteriores, diga-se de passagem – The Next Day. E eis que, mais uma vez, Bowie imprime a marca de seu gênio. Ele, um dos pioneiros a utilizar o poder da imagem, se retira deste novo panorama visualmente saturado e amealhado por celebridades de Facebook. Em The Next Day, a capa é um adesivo branco sobre a capa de Heroes (1977). Nada de entrevistas, fotos ou turnês promocionais. A música é o que ela é. E o mundo agradeceu o seu retorno.
 
Agora, em 2016, a felicidade prometida pela vinda de um novo álbum de David Bowie assumiu inesperados ares com sua morte. E se quisermos conhecer Bowie, é justamente por aí que devemos começar. “Blackstar”, single que antecipou o álbum homônimo lançado dois dias antes de seu falecimento é, por si só, uma obra-prima jazzy, improvável, com a anticomercial duração de 10 minutos. Quem, em tempos de megavelocidade e ultrasuperficialidade poderia parir algo assim? David Bowie o fez. Mais uma vez. Nos desafiando e desafiando a si mesmo.
 
À noite, quando olhamos para o céu e vemos centenas, milhares de estrelas, é possível que algumas delas já estejam mortas. Mas sua luz ainda nos atinge e ilumina. Neste 10 de janeiro último, a maior das estrelas da constelação pop se apagou. Seu brilho, contudo, ainda nos aquecerá e orientará por mais que décadas, desafiando não só o espaço, mas o próprio tempo. Pois é olhando para o passado legado por David Bowie que poderemos ter algum vislumbre do futuro da música e, muito provavelmente, da arte. Ou como me disse a Bárbara, hoje pela manhã: “Papai, o titio Bowie não morreu. Os artistas não morrem.” 
 
P.S.: E se tudo não passar de mais um estratagema de Bowie para, num futuro próximo, se apresentar em nova e espetacular reinvenção? 
 
*Márcio Jr. foi sócio-fundador da Monstro Discos e Goiânia Noise Festival, é vocalista da banda Mechanics, sócio da Escola Goiana de Desenho Animado, Mestre em Comunicação (UnB), Doutorando em Cultura Visual (UFG) e autor do livro COMICZZZT! Rock e Quadrinhos: Possibilidades de Interface. (marciomechanics@hotmail.com)
 

Comentários

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  • 20.01.2016 22:48 MARCELO CESAR BLASON

    Marcio querido: que belo texto! Vou compartilhar com certeza! Uma das melhores homenagens do gênio que eu tenha lido. Muito obrigado. Marcelo P.S. Saudadedoce.

  • 17.01.2016 22:35 Joao

    Adorei. O melhor texto na imprensa brasileira. Parabéns ao articulista. Escreva mais sobre música.

  • 13.01.2016 16:10 cesar

    Bom texto !!!

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