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Marcela França de Almeida

Aventuras em Lilliput

| 08.12.15 - 10:40
Goiânia - Para Jonathan Swift, autor de As viagens de Gulliver, essa terra de gente miúda, na qual nos sentimos gigantes, fica no Oceano Índico. Apesar de sabermos que se trata de uma sátira à rivalidade francesa e inglesa de sua época, o ponto de vista do presente texto não tem a tônica da crítica da mediocridade e futilidade de um povo “menor”, mas, ao contrário, a sutileza de se enxergar de perto um mundo do qual já fizemos parte e que negamos a todo tempo reconhecê-lo na atualidade adulta de prazeres e desesperos cotidianos. 
 
A questão que trago aqui é por que nos negarmos a acompanhar os habitantes dessas terras que nos são tão próximas? 
 
Podemos nos apoiar na sempre justa argumentação de que não há tempo, de que há desejo, mas não há maneira de abandonarmos os afazeres úteis pela inutilidade de uma brincadeira. E seguimos deixando a infância aos “monitores”, sejam pessoas pagas para entreter as crianças, sejam as telas iluminadas que prometem uma vida muito mais interessante do que a vida compartilhada. São dois mundos completamente distintos e os adultos têm outra forma de encontrar essas ricas experiências que deixaram de ser infantis. Seria verdade? Deixaram?
 
Mas voltando às aventuras lilliputianas adultas, de várias formas essa tônica pode ser retomada pelas artes para além da escrita inventiva de Swift. No momento me ocorrem duas experiências com artistas contemporâneos e deixo a dica para quem se dispuser e puder vivê-las de perto. Uma em que podemos nos perceber como o próprio gigante, referência a uma exposição da artista inglesa Rachel Whiteread, que recriou uma minúscula cidade provocadora da curiosidade dos espectadores que inevitavelmente se curvam para olhar o que acontece por dentro das casas. Ela, que normalmente provoca a mesma percepção ao recriar o avesso dos objetos preenchendo-os com resina e gesso, traz nesta outra versão de nosso avesso o brilho e as luzes de uma vida que está para surgir quando a procuramos com o nosso olhar.
 
Na outra vivência, nos vemos como os próprios moradores de Lilliput, ínfimos, porém curiosos com a desproporção das peças que se apresentam de forma impetuosa em nossos caminhos, são as obras de Richard Serra, escultor norte-americano que trabalha com folhas de metal, dobrando-as como papel, e isso em grande escala. Ao dar movimento a essa matéria pesada, o escultor causa a sensação de leveza, dá ao metal uma profundidade e uma coloração que nos provoca um certo descentramento ao caminharmos em meio às suas gigantes peças. Ele retira do metal e do espectador as certezas de suas propriedades.
 
E o que torna encantadoras essas experiências é aquele tanto que vivemos, sentimos e tentamos, por um longo tempo depois, nomear, descrever aos outros que nos habitam o que foi mesmo que se viveu ao estar ali. Esse resto que permanece após o abalo da arte é que nos provoca uma busca incessante por significações que antes não nos pareciam tão relevantes assim. O que faz da arte o encontro com a surpresa, com um certo encantamento por aquilo que até então não ganhara vida em nossos pensamentos. 
 
O artista, muito próximo à criança, encontra na matéria a vida que deixamos perder ao desprezarmos o sensível do que não nos é útil. A criança vê na pedra uma grande novidade, olha para um espaço já estabelecido e o questiona em sua estrutura, nos olha nos olhos e chora pedindo por mais, pois sabe, sem muito conhecimento, mas repleta de sensibilidade, que há que se ter mais. E é no quarto de uma criança que essa brincadeira lilliputiana se dá na forma mais absoluta da experiência. Ao nos sentarmos no chão e vermos uma reprodução da vida em traços que muitas vezes não estamos preparados para compreender, mas sabemos que tem algo ali que nos diz respeito, ou ao nos deitarmos e nos entregarmos como tela para pintura e os cabelos como massa para a escultura, pois nem sempre se trata de um salão de belezas. 
 
Entregar seu corpo ao lúdico do cuidar da criança, mais do que apenas uma aproximação física, como pode ser lido em qualquer livro de autoajuda, é também uma forma da criança nos ver melhor: esses olhos grandes, essa boca grande, essa pele que não tem a mesma textura, esses fios de cabelo que são lindos, mas de outra cor, com outro volume e, sim, novamente, outra textura, porque envelhecer faz parte da história a ser compartilhada.
 
Aproximar-se é mais do que uma função física, estamos falando de uma aproximação subjetiva, em que a criança olha bem de perto a diferença e a toma como uma experiência de carinho não dirigida apenas a ela. Essa atuação permite que ela perceba que muito do que se vê ali é como em si mesma e que outro tanto é só diferença e surpresa. 
 
Amar a diferença não pode ser um mandato, mas um cuidado próprio para que se possa amar o que não lhe é familiar em seus próprios atos, para que se possa tratar de saber que o que se encontra em uma terra é bem o avesso do que se encontra em outra, sendo que o avesso lhe é próprio. Percebê-lo como próprio não é uma função natural, há que se apropriar dele. Seja por parte do gigante, seja por parte dos miúdos, o estranhamento, como efeito da diferença, reside em todos os territórios e o que podemos fazer com ele? 
 
Nos acostumamos a viver como estranhos e alheios àquilo que não há tempo de nos aproximarmos. E depois de um dia de trabalho e de horas perdidas no trânsito enlouquecido por criaturas raivosas, chegar em casa pode se parecer e muito com o sobreviver a um naufrágio. Mas a surpresa pode nos salvar!



*Marcela França de Almeida é psicanalista e professora do curso de Psicologia da UFG.
 

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